Tuesday 20 December 2011

Um punhado de versinhos da roseira.

Para a linda tia Rosa.

Se a poesia fosse árvore
eu esperaria a fruta cair
com gosto de manhãzinha
pra te dar no café
e plantar
a
semente
no quintal da tua casa

Mas até palmeiras imperiais
são baixinhas pro tamanho
dos teus versos
que de Rosa tem mais
do que só
o nome.

E Rosa
ainda é monocromático demais
pro teu caleidoscópio
[se eu pudesse
te chamava
de arco-íris
e vagalume
ao
mesmo
tempo]

Se poesia fosse árvore
ela ia teimar pra ser menor
e virar uma
Rosa.

Sunday 18 December 2011

Entre passos de Cronópios

Você tinha constelações nas palmas das mãos e poeira cósmica que esqueceu de limpar das pontas dos dedos, depois de ter pintado o Universo. De vez em quando você deixava os punhos fechados, como quem faz birra. As vezes fazia birra mesmo e esmagava ou apagava uma estrela ou outra. Criava tantas outras depois.
Uma noite dessas eu lhe disse que estava com frio e que queria ir ver o céu, porque as estrelas me lembravam as palmas das suas mãos. Você vestiu aquela calça de algodão - que as vezes parece mais curta do que é - sem se importar com a temperatura. Alguma coisa do lado de dentro te mantinha quente e você dispensou o casaco.
Eu gosto de constelações sem nome, pra brincar de ligar pontos e você observa sempre as estrelas maiores - e Marte, porque é vermelho e você sempre, sempre se atrai por tudo que tem som de vermelho. Aí você se aproximou como se tivesse sentindo frio e encostou em mim - não ombro a ombro por você ser (bem) mais alto. Me pediu pra ficar e eu disse que já estava. Então você disse pra eu permanecer e eu segurei o seu dedinho com o meu sem precisar dizer nenhuma promessa. Você achou Marte no céu de novo.
Caminhamos um pouco mais e em uma dessas dobras do horizonte encontramos aquela menina que desenha. Ela sorriu pras minhas mãos e pras linhas poucos definidas de mim. Esboçou qualquer coisa no papel - talvez um sorriso - e me pediu que lhe falasse três coisas que me encantavam. Eu disse "O Caio", com a voz de sempre, me prolongando um pouquinho no "a". Ela revirou os olhos por trás dos óculos:
- E o que mais?
- Já foram mais de três coisas.
- Mas você só disse uma.
- O nome dele tem quatro letras.
Ela me estendeu a caneta, mas não o papel. E como sempre, quando me faltavam folhas, você estendeu o braço pra que eu escrevesse - gostava tanto disso, que as vezes eu escondia meus cadernos só pra te dizer melhor as coisas. Além do mais, de algum jeito, a tinta que eu te deixo nos braços não some, nem mesmo quando você decide correr pra dentro d'água do jeito que bem estiver, assim que seus olhos avistam o mar. Não preciso me preocupar com o risco de perder as palavras molhadas.
É divertido te ver dando ritmo às ondas. Acho que você e o mar se fazem de um só, ou se parecem tanto que eu confundo os dois - mesmo que seus olhos sejam verdes e você cisme que o mar é azul. Eu te deitava no colo e te dizia que sim, que você é feito de mar e que isso me assusta e me encanta exatamente do mesmo jeito que o rugido do oceano em qualquer hora do dia. Irrita, afoga, engasga, carrega pra longe e traz de volta. Cura. Machuca, também, se você não souber direito onde está e esbarrar sem querer em pedras submersas. E eu te dizia que via tudo isso no fundo dos teus olhos. Que eu conseguia ouvir o som do mar na concha das tuas mãos e que é facil ver as ondas se agitando nos teus movimentos teatrais.
Você tinha constelações nas palmas das mãos e sua fruta favorita é o mamão. E eu sei que você ficava irritado quando eu pedia para você descascá-lo pra mim. De vez em quando eu tinha que pedir, porque você sabe, sou desastrada e volta e meia fico com um medo muito estranho de me cortar na tentativa. Mamões. Mamãos. Você também não gostava de se importar com o plural das coisas - tudo é muito singular pra precisar assim de plural. Descascava mais um e comia devagar como sempre, pro tempo ficar zangado. E você nunca acreditava na zanga dele porque pra você, zangado não é palavra de zanga.
Uma vez você me deu um beijo de mamão. E eu não precisei descascar nada.

Com cara de paisagem

Escrevo a obra de um autor que foi jogado
Da janela da sanidade
Pra rimar bonito; defenestrado
E da poesia violada
com o ódio
da rotina.
(que o fazia
des
gostar
do ritmo.

Reflexos no aquário

Eu ando d'um jeito que não sou coração de ninguém, nem mesmo o meu. Cadê, sabe? Não tem, não. Acho que nunca tive. Não tô descrente do amor. Só não creio nele para mim – por enquanto, como acontece toda vez que o vazio tá grande demais. E cheguei n'um ponto tão aqui dentro que a minha mão não me alcança mais. E nem o braço de ninguém.
Eu sinto falta da prosa fluindo em mim como era comum. Sinto medo, também. De repente, eu me deparei com o frio na barriga nada confortável que o bloqueio de si mesmo gera.
Gabriel García Márquez ficou um ano sem escrever um tantinho sequer... e se eu ficar assim? Não. Acho que não fico. Mas pro meu imediatismo latente, um mês já é uma vida e meia que eu escondi debaixo do travesseiro.
Vá lá, me transbordo ainda, muito. Tenho alma e quem tem alma vive um tempinho sem coração. Feito aqueles peixes que passam três dias fora do mar. Mas de todo jeito, três dias acabam.

Dezenove infinitos

Era pra ter sido postado no dia sete, mas né.

Caio, se eu pudesse
te dava dezenove velas
mas não daquelas de por
em cima
do bolo
e sim das de caravela

E, Caio, pediria pro vento,
pra soprar com força
mas pra não
te deixar
cair
por algum dos cantos
do mundo

Porque você sabe, Caio
que você é
o Caio
que não cai
[pra baixo]

Por isso eu digo
Caio, mas não cai, não
mesmo depois de
uma
duas
três
vinte e nove
cervejas
que você bebe sem nem
ficar tonto
[e por isso as vezes caia pra cima
na hora
de comemorar]

Caio, esse poema tá assim
sem gosto de bolo
de chocolate
que você come
até fazer tua hipocondria
achar que vai ficar
diabético

Mas é que eu quero
que tenha gosto
de parabéns pra você
um daqueles sem
constragimento
pra você saber
o que fazer
quando eu cantar

E Caio,
tomara que não esquecam
que o "com quem será"
é comigo.

Sunday 27 November 2011

Sobre os solavancos de uma escala.

Acaba de me escapar um pensamento que seria bom ser desenvolvido. Falava em sussurro o nome de um poeta. Seria Kerouac? Agora não lembro, mas a rima quebrada do nome dele desce cheia de cantos pela garganta. Quiçá eu recorde assim que deitar a cabeça no travesseiro, mas aí a preguiça já vai ter tomado as minhas juntas todas e eu não vou dar conta de fazer como ontem a noite, quando fiz questão de levantar para sorrir com Vinícius.
Para onde será que vão essas idéias que se desmancham no nosso pensamento? Será que caem em algum pedacinho de terra e, se a terra for boa, florescem? Será? E no terreno com espinhos, ela conseguiria brotar? Acho que não, decerto faria que nem a parábola mesmo e sufocaria. Mas que droga, eu detesto perder os pedacinhos de musica proseada que me correm à mente volta e meia. Tomara que quem achar os meus papéis não escritos lembre da minha idéia e coloque tinta na pena pra não esquecer mais.
Pensa. Pensa.
Lembrei! Não era o Kerouac, mas sim o Dylan: "E o homem do Tamborim que estava ali sentando com o chapéu a lhe esconder o rosto, atendeu ao meu pedido singelo: Uma música. Estar assim, sem direção para casa, me fazia sentir mais frio na lembrança de tempos atrás, quando a mesma junção de acordes me fazia chorar".
O Homem do Tamborim. É, esbarrou comigo por esses dias eu escrevi isso num pedaço de mim pra lembrar depois. Acabei me jogando no fundo da bolsa e não lembrei mais. Não até agorinha há pouco, quando estava trocando de bolsa – sabe que as vezes eu tenho dessas coisas de olhar cada continha de ingresso pro cinema que fica perdido nelas – e achei. Achei meio rasgadinho, mas achei. É estranho ver que o chapéu dele ainda levanta da mesma forma e os olhos ainda me observam com aquela mesma alma sorridente. Ainda peço para que toque outra música pra mim, pra ver se eu consigo me escutar no meio dessa insônia.

Saturday 12 November 2011

Vertigem em quatro letras.

Caio, mas não cai, não
ou Caio,
mas pra cima.
[talvez num balão de ar
quente em Olinda]

Caio, mas não cai, não
pelo menos por enquanto
pr'eu terminar de te recitar
aquele verso
interminado

Caio, com quatro letras
mas não pra baixo,
já disse
que teu nome
só cai pra cima

E, Caio, de novo
ao contrário, não é o mesmo
feito Anna
Caio é assim
côncavo e
convexo
[e sorri por ainda lembrar
o que é isso]

Caio, volta pra cidade-avião
e vê se volta também
pros braços da
filo
Sofia.
[que ela sente saudade]

E você sabe, Caio
que eu adoro falar teu nome
e repito isso
em todas as estrofes
pro poema ficar mais bonito

Caio, era pra ser segredo
meu,
mas te conto
que eu acho que sinto
mais saudade
que a Sofia.

Tuesday 8 November 2011

Quase síndrome de Peter Pan

Eu perguntei se você havia visto
de que cor o vento
escapara por entre as nuvens
E me respondeu: “que é isto?
Não se vê vento, somente os abutres
pairando no firmamento”

Acusou-me à criancice
de querer ver cor no ar
e proibiu-me (com dedo em riste!)
de tentá-lo pintar.
[É por isso que eu não consigo
Gostar um dedo de adultos.]

Mas sequer se preocupou
Pois o mundo é lugar infeliz
(em suas palavras cinzas)
Ele mesmo nunca poupou
Uma só criança (que faz de aprendiz)

Só vim te avisar que andei cansando
dessa falta de tinta
nos pedaços de mundo
que você não quer mais ver
E essa monotonia toda
me faz desejar uma pedra
no
meio
do
caminho.

Tuesday 25 October 2011

Metalinguagem no paletó.

Eu sinto uma falta meio doente (tossindo)
do que eu costumava escrever(-me) em cadernos
e continua sorrindo o tempo, de terno
para minhas letras a lápis, sumindo
[Naquela folha sem pauta
no bolso]

É de terno, mas não arrumado
que anda Cronos, enciumado
por não poder competir com a poesia
que à minha cabeceira nascia
assim meio sem tom de rima
num passado que eu via de cima
(de nós dois na corda bamba)

E os versos que me sumiam à tarde
e que vinham acordar o sono curto
dos meus olhos (insones) de furto
de minha alma que não faz alarde.
[essa aí, quiçá,
que esqueceu
de saber gritar]

Talvez por isso essa minha mania
de se inventar em fazer poesia
usando um colchete e os parênteses
pra disfarçar as olheiras latentes
que não acharam, sozinhas, o verso
que nasceu ali tão só, disperso
[e que eu esqueci
de anotar.

Tuesday 18 October 2011

Ao que poeta em tinta óleo

Pincela a figura amorfa
que se constrói na tela
e que aos poucos se torna
Da alma, a janela.

Dos dedos sujos de tinta
transborda a música ensaiada
pelo improviso das quintas
à tarde (de madrugada)

E paletas de tons tortos
se desfaziam em melodias
coloridas de navios
que atracavam nos portos
Em perfeita eufonia
- de luzes e de pavios
[que apesar de tudo
não explodiam
com fogo]

E eu sentada com receio
[lá no canto
de te acordar do devaneio
[ou do encanto

(mas eu quem estava dormindo, não?)

acabei te escrevendo um poema
versado em folha de alfazema

[cor de tinta de caneta.

Wednesday 21 September 2011

Desembolar-me-ia, se pudesse.

Tenho achado complicado dizer qualquer coisa minha, aí prefiro olhar e dizer os outros “quem”, porque o que haveria eu de dizer sobre o que não me ocorre mais? Às vezes a gente não consegue se dar pros outros porque não tá tendo nem pra se manter de pé. Então, eu te digo, meu bem, que se eu me ausentar de ti, não é por nada, mas antes - e mil vezes mais – porque eu me ausentei de mim. Há tempos tenho tentando me encontrar, mas não sei mais como chamo esse punhado de sentimentos cansados que finge repousar. Só que sentem ainda. Latejam ainda e insistem em não dormir. Deixa eu por esse parágrafo no passado, porque me ocorreu súbita mudança.
Não é pôr-do-sol e nem noite. É aqui mesmo, no meio do dia, naquelas horas que a preguiça cobre a gente feito um edredom e a gente fica mole feito um lençol. Há qualquer coisa grudada no relógio de parede que faz o tempo se esforçar pra mexer os ponteiros. Talvez o calor – de dentro pra fora - que tira a disposição espontânea das badaladas. Ultimamente tenho me rimado n’um ritmo diferente, sem métrica bonita, feito decassílabos, mas irregular como o olhar que eu escondi embaixo do travesseiro.
Acho que entendi a mudança súbita da qual falei mais cedo: Voltei. Voltei tanto que meus copos quebraram e a minha tempestade virou mar e furacão ao mesmo tempo. Só agora eu notei que estava juntando uma camada espessa de poeira sobre a minha caneta. Mas então, me puxei de volta. Voltei àquele estado de palpitação constante, de exaltação e de mim mesma.
As horas ainda tardam, mas estou até aproveitando essa agonia que me enche o estômago de nós. De... nós. Dois? Talvez. Eu nunca fui muito boa com matemática, principalmente quando eu não acho o que contar. Não que seja zero, mas é infinito demais – seja lá o que for – pra eu pensar na possibilidade de me arriscar a dizer. Quantos? Dois. Mas se forem cubo de açúcar fica doce demais. Muito doce pra pouco eu. Então é melhor dividir.

Thursday 8 September 2011

Ao que não precisa de guilhotina.

Acróstico antigo, bem antigo mesmo.


Vertia letras como quem desfaz-se em hemorragia
Inconstante, às vezes estancava
Corria em surto literário
Trombava volta e meia com o gordo estagiário
Ostentado a posição de chefe mal
Remunerado.

Procrastinava entre garrafas de cerveja
Internamente, dava gargalhas - que expunha
Conforme a porcentagem de álcool enseja
Contudo, sabia controlar-se e centrava-se
Atrás da mesa, com os pés esticados
Relendo os rascunhos mal acabados da
Tal menina que lhe escreve acrósticos.

Sunday 21 August 2011

Poema de três pontas.

Aos queridos Victor, Thiago e Bill.

Torno os olhos para o copo de cerveja
Honorável, à mesa dos moços que
Inocentes e meio (muito) bêbados
Argumentam sobre a alma e, na bandeja,
Godard, que não é queijo, é cineasta
Ouve atento a discussão entusiasta.

Volta e meia, vinha o garçom
Irrigar mais um tanto a conversa
Com uma versão barata de Bourbon
Talvez causa da futura ressaca
Ou da prosa que saía mais diversa
Reviravoltando os bolsos da casaca.

Badalava o fim da noite no relógio
E entrou a moça de porcelana
Aquela que é mais durona que
Tony Montana – só que sem a cicatriz
Riu dos dois ébrios, mas notou, infeliz:
Iria ter que carregá-los
Zonzos, até em casa.

Friday 5 August 2011

Pra onde olha o poeta?

E despoetizavam os grãos da praia
Os olhos metódicos do versador
Que contornava, de havaianas, a orla
Já que ele sentia gastura da areia.

E esqueceu-se até do mar que lhe gritava
Uns versos transformados em maresia
Pois as orbitas – indiscretas – projetas
Na moça que vinha caminhando, altiva.

Era morena, mas não vinha da Angola
Tampouco tinha um chocalho na canela
Ainda assim as ondas se diminuem
E se curvam dando beijos aos pés dela.

O escritor se meteu a pô-la em métrica
Mas descobriu que ela escorregava
Achou melhor então deixá-la solta
Escorregando pelo vento
Com o tamanho
De onda.

Monday 25 July 2011

O que esqueci no Avião.

Nem sequer escorrego mais pelas beiradas, porque falta fôlego pra chegar. Estou longe da borda e não deslizo. Solidifiquei-me ali dentro de um congelador e a minha massa comprimiu-se toda num cubinho que não é de gelo. Ando sem inventar nem mesmo aqueles passos em falso que eu dava em minhas tentativas de caminhar pelo meio fio de uma das asas da minha Cidade-que-não-voa.
Hoje fiz questão de roubar as palavras de Manoel de Barros e voei fora da asa. Voar assim, bem longe mesmo e acabei n’um pedaço do litoral. Os meus olhos já não tão atentos como outrora, fugiram pela linha do horizonte para buscar o comecinho do Sol que se levantava do mar como um menino peralta que espia o outro lado do muro. E a brisa me trouxe de volta os olhos antes que o rapazinho dourado me ocupasse demais a vista e eu já não o encontrasse mais. Lembrei-me fechá-los bem para fotografar direito o que não conseguia reter com a visão. Veio-me correndo o barulho das folhas de coqueiros bastardos – daqueles que nascem tortos - que eu desde muito pequena confundia com o mesmo barulho de chuva. E o gosto de sal que o vento carrega depois de ajudar a formar as ondas.
Enterrei os pés na areia e fui toda junto. Senti frio o de mim mesma que soprava forte pelas veias do meu não-sorriso e ainda assim, ri. Engraçada a mania que o mar tem de forçar a gente a se confessar diante dele. E força de um jeito doce, de forma a fazer com que a gente ache que que a reflexão é toda nossa. Mas de mim já não resta muito, então vamos, deixa Netuno engolir o resto. Aliás, Netuno, enche cá o copo de água salgada mesmo, pra ver se eu rendo mais nessa minha tempestade contida. Contida sim, nesse copo meio cheio. Meio. E eu que sempre reclamei de metades agora estou só cinqüenta centavos e não me basto nem para bancar o café da manhã.
Flutuei o resto do dia, sem que derretessem de mim os buracos. Agora quem saía toda faceira era a Lua. A mesma lua que a minha avó costumava dizer nas histórias-de-cadeira-de-balanço nos meus idos aninhos de criança. Quiçá ela estivesse um pouco mais velha e para mim parecia menor – e eu já não cabia mais na cadeira da vovó. A Lua, já alta, se distraía ao brincar de pique-esconde entre as nuvens como se conseguisse manter-se oculta. Pingava sobre o mar em um tapete de prata e eu é quem tinha vontade de escorrer. Escorri enfim, pra dentro de um poeminha que a lua refletida na maré alta engoliu. Só o papel, sem romantismo de garrafas e rolhas e laços. Deixei ir as palavras para pular corda com outras frases que eu haveria de compor. Talvez eu consiga desentupir de mim o ralo pra voltar a correr em rio descongelado. E que não seja pela metade.

Monday 18 July 2011

Às oito letras que eu guardei num baú.

Não era uma vez, não. Eu nunca achei essa expressão bonita. Maldito o que inventou esse jeito de começar narrações – embora eu adore escutar a minha avó me contando a história da Lua e do Sol começando assim, com o “Eeeera” bem enfático. Não era uma vez, era uma alma. Era não. É. É por longos quase dezenove anos. Uma alma que é dentro de um corpo que carrega um nome – que muitas vezes pesa mais que a alma, o corpo e as roupas e acessórios juntos. Vocativo forte até, o dele. Significa protetor, inteligente, ousado e até alto – dependendo do livro de nomes pra bebê que você pesquisar. Começa com F, letra que é uma das que eu mais gosto de escrever (vá por mim, fica até bonita com a minha letra de menininha) e vai indo pelas outras letras combinadas até formar o tal Fernando.
É possível que se “Fernando” fosse uma palavra n’um dicionário, – não o de nomes pra bebê, por favor – deveria designar uma pessoa com um excelente gosto musical e uma capacidade absurda de rir da desgraça alheia, além de também adjetivar indivíduos com forte tendência à hipocondria e medo de personagens infantis – mas se “personagens infantis” disser respeito a palhaços, acho que seria mais fácil usar “Anna” e se fosse medo de galinhas, “Isadora”.
O caso é que Fernando ainda não é adjetivo ou substantivo. É, no mais completo clichê, sujeito – às vezes predicado, porque ele é quem costuma desenrolar as frases empacadas de mim – d’um universo feito volta e meia em textos que não fui eu quem escrevi, mas que de vez em quando eu ponho umas vírgulas no meio dos enunciados. O rapaz é dessas figuras que destoam: parece que o retiraram – junto comigo – do meio de uma década ida e largaram cá (ainda bem!). Fernando é bem dessas figuras que destoam.
Sempre achei esse um nome forte, mas nem me passava pela cabeça que essa força toda ia servir pra me sustentar o canto dos olhos pr’eu não cair. E que esforço que um dia foi me tirar um sorriso. O bonito é que ele fazia os dele de corda pra me puxar de dentro do meu quarto escuro. E não é que agora eu estou do lado de fora?
Vou-me terminando por aqui porque eu falo, falo e refalo e consigo formar no máximo uma foto três por quatro de todo o emaranhado de fotografias mentais que tenho arquivadas cá na minha caixinha-pulsante-de-sentimentos ao som de Beatles.

Wednesday 29 June 2011

Versinhos de buquê.

À Anne.

Seriam as Tulipas
as tuas flores favoritas?
Ou preferes o Lírio?
Quem sabe a Margarida
ou talvez o Narciso?

Gosto de te dar Chuva-de-Prata
Que são pinguinhos de nefelibata
E ficam bonitos no teu cabelo ondulado.

Ainda tem os Copos-de-Leite
Que servem de enfeite
Pra colocar no café.

Ademais, Jacinto.

Monday 20 June 2011

A vista do lado de cá.

Está um bocado frio por esses dias. Ou talvez nem esteja e eu tenha me desacostumado com as quedas de temperatura. Inegável mesmo é que está ficando seco. Tanto que estou ficando amarela-meio-marrom, assim, nos cantos onde me enfeitaram com grama. As árvores já reclamam do peso das folhas e desfazem-se delas a noite, quando ninguém está olhando. Minha via principal ainda está a mesma de quarenta anos atrás – com as pegadas no cimento e os nomes dos namorados adolescentes que nem chegaram a se casar. E volta e meia passa por aqui um garoto. Guri meio desorientado mesmo, que caminha olhando pros sapatos vermelhos. Aliás, ele anda de sapatos vermelhos e meias listradas! Parece um personagem daqueles de desenho animado que as árvores bisbilhotam pelas janelas dos apartamentos.
Esse menino curioso que mais parece um velhinho, – já que lê jornal sentado no banco em manhãs de domingo, bem aquele retrato que a gente guarda dos tantos avós que a quadra teve – tem passado por mim com uns olhos pesados, andando mais sem compasso do que nunca. E é tão estranho isso, não escutá-lo mais cantarolar as poesias que ele tem tanto apreço. Quando ele se vê afundado assim na melancolia, minha vontade é transformar meus ipês em braços e segurá-lo afastado do mundo. Quiçá, deixá-lo a observar o céu com aqueles olhos atentos, para que ele pinte os desenhos que fizer com as estrelas nas telas daquele ateliê.
Ontem, se a memória não me falha, vi-o mais cabisbaixo do que nunca. Usava uma roupa comum demais, que não serviria bem em algum vovô, como costumava ser. Muito cheio de ausência: tanto de cores quanto do olhar verde e absorto. O menino não estava mais melancólico, não. Estava triste e não com aquelas tristezas sem motivo que de vez em quando aparecem por aqui – sabe como é, bairro meio aristocrático, essa Asa Sul, e algumas pessoas gostam de achar problema nos cantos das pias. Ele estava menos do que nunca e faltava naqueles olhinhos verdes alguma coisa, que talvez fosse até a cor.
Não havia reparado em como ele deixara o cabelo crescer, – e olha que eu sou muito atenta! – nem em como eles agora cobriam as órbitas quando ele mantinha a cabeça voltada para os pés com sapatos normais e meias brancas. Nada de cor, nem mesmo os cabelos meio-loiros dele refletiam mais o Sol.
Aqui eu escutei-o sussurrar.
Sentou-se de costume no banquinho vermelho de sempre e começou a anotar qualquer coisas na própria mente. Descobri pelas palavrinhas que o vento não deixou-o derrubar no chão – com esforço, porque estavam bem pesadas – que ele perdera . Perdera enquanto se distraía no meio dos quadros da própria casa. Perdera enquanto conversava amigavelmente sobre a prosa de Galeano, até que acabaram-se os olhos que o enxergavam. Acabaram-se n’um Adeus impronunciado. Então, não tinha mais aquilo que lhe fazia pisar de forma diferente no chão que se dispunha quase sempre duro demais sob os pés. No meio da animada conversa literária, o menino notou que havia perdido os sapatos vermelhos.
E não quis mais usar meias coloridas.

Thursday 19 May 2011

Bafômetro.

Ao Temulento Jornalista.


Fiz um amigo essa semana. Amigo de verdade. A gente toma cerveja junto e isso já define um conceito complexo de amizade real, afinal, não é todo mundo que agüenta os quiçás cobertos de álcool. Thiago, o nome dele. Rapaz meio fraco, formado n’um desses cursos que todo mundo almeja – diferente do meu, que nem diploma precisa mais pra exercer a profissão. Conhecemo-nos por aí. Certo, eu conto, foi durante uma dessas homenagens cinematográficas às versões mais antigas de Star Wars. Minha namorada disse que é bom que eu arranje uns amigos (até porque é bom ter alguém pra me levar pra casa depois de ter ultrapassado meu limite etílico). Tornamo-nos bons amigos, até.
E vivemos cá nessa roça. Temos umas poucas fontes de entretenimento, entre elas, o Bar do Zé. Ou muitos deles. Será que pertencem ao mesmo Zé? Enfim. O caso é que, calma, deixe-me lembrar. Ah, sim. O caso é que estávamos no último fim-de-semana n’um dos bares do Zé – fizemos um trato de conhecer todos os bares do Zé da cidade, mesmo que eu considere impossível – e eu cantarolava muito despreocupadamente uma música que o Thiago não adivinhava por nada-nesse-mundo qual era. Engraçado, porque eu sempre canto bem depois de umas (muitas, convenhamos) cervejas. Acometeu-me um transe repentino, rapaz. Não consegui olhar pra mais nada além da placa de pare que se posicionava imóvel logo ali naquela esquina. Thiago sussurrou alguma coisa no meio de dois filhas-da-puta mal pronunciados e eu saí andando com a rua se mexendo sob os pés. Ou era eu quem estava mexendo sobre a rua? Não sei rebolar, devia ser a rua mesmo. Em todo caso, as coisas melhoraram quando consegui atracar-me à placa com o riso solto – daqueles que te fazem babar às vezes. Thiago virou pra mim com aquela cara sem óculos e disse com a voz rápida demais pr’eu entender:
- Ô, Victor. Victor. Victor, prestenção! Onde é que tem outra placa dessas? – No meio da frase ele já havia desviado os olhos de mim e contemplava feito um doente mental aquela forma octogonal sobre nossas cabeças. Eu respondi com um gesto apontando na direção de um cruzamento que eu tenho certeza absoluta que estava lá. Ele deu uns passos na direção oposta e riu. Sumiu na esquina voltou uns cinco – ou mais – minutos depois com uma chave de fenda do tamanho do meu antebraço e saiu desparafusando a minha placa.
- Ei, essa a placa a minha. Larga! – Eu esbravejei no tom menos embriagado que a minha voz permitiu e comecei a puxar para mim a placa que despencava. – Eu achei, é minha!
- Mas quem desparafusou fui eu, então é minha! – Gritou com a voz desafinando no meio da frase o amigo-que-estava-virando-oponente.
Como um estalo na cabeça, me veio a idéia. Iríamos apostar. E quem conseguisse mais placas... É, ganharia alguma coisa. Dividi de imediato a minha brilhante ponderação com Thiago, que tirou não sei de onde, uma outra chave de fenda.
Corremos pois, com o chão sambando sob nossos pés e o mundo girando em nossos olhos. Eu estava até bem – conseguia fazer um quatro perfeito com as pernas depois de cair no chão.
Acho que nunca corri tanto na vida. Depois da quinta placa eu já não sabia mais onde estava, mas enxergava o Thiago uns metros à frente – assim, meio pra esquerda e se eu entortasse a cabeça ele ficava reto. Eram cinco. Uma de Parada Obrigatória, duas daquelas de faixa de pedestre que ninguém obedece e mais duas que não eram iguais, que eu também não recordo o desenho. Thiago tinha duas a mais, isso porque havia conseguido pegar aquela primeira – que era minha!
- Victor, como é que vocês roubaram doze placas? Claro que não. – E essa era a minha namorada me desmentindo. Mas eu tenho certeza que havíamos roubado.
- Bêbados não mentem! – Eu retruquei com dedo em riste e virando o resto da lata de cerveja que já havia muito estava quente. Uma careta e pronto, voltei à pose de defensor da causa.
- E nem sabem contar.
Se eu parar e pensar bem, ela pode estar certa. E acho que nem deitado eu consegui fazer aquele quatro com as pernas.

Se ladrilhar não se pode, estendem-se as linhas.

Escrito com a Anne.

Passei dois mil dias e meio a desfiar um pano
Para fazer linhas - meio elásticas -, bem fininhas
Guardando e solvendo em vida maior engano
Posto que dele envolvem-se em pé as entrelinhas.

E no meio dos nós que fiz nas pontas
Enlacei a tua vida meio destoando da minha
Correndo em frente, mas com a mão na tua
Do passado que se já não se lamenta é que
Pende-se ao versejar tão seguramente pela rua.

Mas eu esqueci que quem corre demais, tropeça
Quando vi, já tinha embolado as pernas todas
Naquela mesma linha que amarrei lá na frente
Não teve jeito: caí de ponta-cabeça.

Pregou-me o lume do vagalume quente
Caiu-me ao certo, bem no peito
Como quem queria pô-lo num letreiro:
Quem muito vê, turvo enxerga o horizonte já feito.

Me diria, então, meio cega e com defeito
Fiz careta com o gosto do barro vermelho
Que sujou a roupa, o corpo e cá dentro
Além de tudo, me rasgou o joelho.

E eu crendo em crentíssima crença
Na divindade do amor que me governa:
Não há um só momento que valha
Todas as linhas já postas ou a interna,
Que não desfaz-se por nada da tua
Na verdade, ela se mistura
Pr'eu me confundir cada vez mais
E tropeçar outras cem mil vezes
Se não aportar no mesmo cais.

Friday 6 May 2011

Pra você encontrar seus sapatos.

Para Daniel Silistensen.

O menino que é dono do Nino
Se perde no outono
Que o Quintana escreve
E se derrete no pousar leve
D'um pincel que desenha um violino.

E
Vai
Descendo
As escadarias

Da biblioteca
Ao som das cotovias
Que tricotam as histórias
Antes da hora da soneca.

E o menino que é dono do Nino
Se esconde nos livrinhos empoeirados
Faz questão de arrumar os sapatos (vermelhos)
Antes de ir caminhar com seus passinhos de felino
ou poeta.

Friday 15 April 2011

O tropeço que dei em Vinícius.

Disse com a mão no peito, em juramento
Que de tudo, àquele amor seria atento
E repetiu o sempre, o muito, e o tanto
Com um sorriso de contentamento.

Mas desgastou o canto dos lábios, tonto
Da finitude do tão honroso sentimento
Que ele cultivara sob o saudoso manto
A salvo das pragas e do relento.

E o eterno retumbou no esquecimento
Ouviu-se o sussurro de acalanto
Que deu por último, o amor (sem rima)

Que se morreu, então, n'um vão momento
Desencantou em face d'outro encanto
E desfez-se o riso solto em pranto.

Thursday 14 April 2011

Sobre poços inundados.

Mais um feito com o Cadu. Os meus tão em itálico

- Não dou conta mais. Sabe que o meu maior medo no mundo é lhe pôr em minhas linhas? Porque quando eu escrevo me saem das veias tudo quanto é coisa que o meu coração bombeia. E ele só sabia lhe bombear. Só fazia aquele bate-entra-sangue-bate-sai-sangue porque o seu peito badalava o relógio de qualquer coisa que havia em mim. E eu lhe escrevi. Ah, mas que dor que dá lembrar das minhas auto-destinações para você. Rasga. Rasga forçando o som do erre pra sentir mais forte. Você sussurrou e o Adeus escapuliu por entre os seus olhos que dormiam semicerrados de medo ao meu lado.

- Eu menti, menti porque eu sou só mais um humano que peca e faz toda a coisa errada tentando se encontrar. A minha alma pesou e eu não sabia se você ia suportar sozinha. Foi o meu erro querer tirar das costas todo o peso da minha bagagem? Eu sou um cafajeste por querer jogar na vida toda a minha culpa, mas que eu posso fazer se você se mostra tão resignada, complacente e bá bá bá? Eu me recuso a aceitar que você ainda me aceite. Não é falta de amor não. É que eu penso em transgressão e contigo eu não consigo. Porque o meu erro nunca foi falta de amor, nem de caráter ou de percepção. É que eu não sei como amar. Como rasgar de vez o peito e deixar alguém ir cortando pra costurar do lado a parte que falta. Eu não sei suportar a dor que é dividir um mundo acompanhado, mas eu quero. Eu queria ter pelo menos tentado deixar você me ensinar. Eu sou um cacto. É isso. Quando tentam entrar em mim - bem fundo - eu furo. E às vezes eu mato a expectativa que alguém tinha de se achar dentro de mim.

- Pior de tudo? É cogitar a possibilidade de lhe ter de novo e ver o quão feliz isso me faria. É, apesar de tudo que as outras bocas me falaram, não consigo lhe culpar em nenhum canto. Talvez eu até lhe culpe, mas aí seria me culpar também. Essa inconseqüência que me acabrunha a existência só me faz ferir e faz o martelo das pulsações esmagar-me os dedos e os tudos. E nada de conseguir me mexer. Nunca mais. Eu corria pra um caminho meio esburacado, mas certo. Agora tô tão perdida que se eu achar um resto de trilha, já melhoro. O problema é os pés me obedecerem, porque tudo parece tão irremediável. Já dizia o poeta: Todos os meus caminhos me encaminham pra você. Então, não quero mais um caminho, quero a saída e quero já. Cansei de brincar de labirinto. Mas morro de medo de sair dele. Aquela coisa que a gente acaba aprendendo que não é verdade de achar que amor só acontece assim uma vez, desse sentir intenso que arrasta tudo. Amor nunca é igual, eu sei. Mas tenho pavor, mesmo assim. Só quero outro se for maior. E não é troca, não. É medo, daqueles que fazem a gente se agarrar ao travesseiro a noite com o peito explodindo de tristeza por não ter mais coragem de nada.

- Eu cortei, cheio de erros, a única coisa que tinha certeza de ter tido. E me culpo. Que nada do que eu diga nessa sala ou em qualquer outro lugar do mundo vai caber de volta no seu coração. Refazer qualquer história é difícil. Que antes de qualquer começo a gente tem de se livrar da pendência e eu não me livrei. Enfiei a cara nas duas coisas e nem sabia mais o que era razão, fidelidade e todas essas coisas que a gente julga ser tão importante numa vida conjulgadamente amorosa. Eu não, não quero qualquer desculpa, Coração.

- Eu calei. Calei as palavras e todo o entulho bagunçado que eu acreditava ter conseguido ordenar de um jeito que coubesse a tempestade nossa de cada dia. Agora... Bom, agora eu tô te transferindo pra essa folha, te sinto passar pela tinta da caneta mas você não sai daqui de mim, porque me levou embora. E cadê? Isso, fica quieto que é melhor, porque se eu ouvir a tua voz, sangro. Sangro pra todo mundo ver ao invés de só carregar em mim a hemorragia.

- Sei, vai doer em você me ouvir cuspir o que já virou passado. E passado é uma palavra tão bonita, mas vem tão cheia de dedos e mãos e pontapés. Que me acuse, pois fui covarde para não dizer não. Fui covarde nos tantos sins que fui jogando pela vida. A vida tem dessas de querer fazer da gente um monte e depois a gente esquece até de quem foi. É esse o problema, eu esqueci do significado e da importância que tinha pra você. Eu esqueci do que eu era, esqueci da gente e pus uma vírgula muito grande no meio. A vírgula também tinha nome e você não suportou.

- É que toda vez que eu tento aparecer com um ponto final, você me vem com uma vírgula, me puxa assim, pra fazer o ponto meio riscado pra baixo. Ou então me põe reticente. E cadê o "não" que estava na ponta da minha língua? Virou uma vírgula tua também. Uma pausa de dois segundos n’um de nossos assuntos fluidos, ou n’um olhar que você desviou. Se for pra ir, vai de vez. E se quiser ficar, aí eu não sei como faz. Mas começa de desfazendo, que eu vou fazer o mesmo, pintar tudo de branco de novo.

- Eu fui me acostumando a pôr o coração dentro de uma bolha. Se por medo, não sei informar. Mas fiz. E refaria. Num mundo cheio de Zés e Marias sem coração a gente tem de ir achando um jeito de ir se protegendo. E eu fui me escondendo, fui pegando ferros, dissolvendo, me ferindo. Até me tornar essa coisa dura e imperfurável. É coisa da idade. Dessa idade que pesa tanto na vida da gente. Os costumes, a cumplicidade e as variações são tão grandes. Eu não tenho mais tanta força pra transferir o amor. Tô te amando desde sempre, mas nem sempre o pra sempre quer dizer convívio. O que dói nessa história toda é a mágoa. Não quero te ver cultivar lama de porco. Joga fora, se lava com água e cai na vida, coração. Vai ser feliz. Vai. Eu não sei como é que se faz, mas não fica aí catando esmola do passado. Nem cultivando porcaria. Eu te deixo ser, então me deixa ser também! Porque se a gente se esbarrar num dia bonito o céu não pode viver caindo sobre as nossas cabeças.

- Bateram na minha porta por esses dias. Eu não estava. Mudei de casa, virei errante, eremita. Sim, eu até cheguei a achar que tinha uma bela casa, bem decorada, bem construída e com espaço suficiente para agüentar o peso estranho que eu carrego costas. Acomodei-me no sofá por tempo demais, confortável demais e tudo sumiu. Terremoto? Não. A casa nunca existiu. Apenas isso. Sempre fui uma sem-teto. E agora além de estar sem casa eu perdi o amparo das palavras e não sou mais passarinho, porque não sei mais voar. Você quebrou as minhas asinhas já meio machucadas, olhando nos meus olhos pra eu não esquecer como se faz. E eu? Eu disse que tudo bem e me entreguei sabendo de tudo antes mesmo de você me contar. Está surpreso? Pois eu também. Eu tapava meus próprios olhos, mas sempre passava por mim uma fresta de luz que eu abafava com o tom daquela música que eu não consigo mais ouvir sem convulsionar.

- Você é um trem, Coração, e eu sou a estação. Com a gente não podia ser de outra forma. O coração é uma moeda de troca e a decepção é o que a gente recebe de volta. Nada nessa vida é nunca nem sempre. O conformismo é que dói. Dói além de todas as outras dores, mais forte. Que se for preciso cair: Caia. Erguer-se é sempre uma dificuldade, mas ninguém nunca ficou virado de cabeça pra baixo a vida inteira. Que se dói agora, passa. A gente é sempre passagem. A gente vai morrendo em cada poço que a gente cai. A gente vai recriando a cada vida que a gente tem, mas eu pago resgate pra me ter de volta. Eu pago resgate pra você se ter de volta. Porque como eu também não sei o que fazer do que me tornei, acho que você também não sabe o que fazer desse ser que é. Erros são remediáveis, mas quando se está ciente da culpa. Por isso esqueça o perdão, a mágoa e qualquer erro que por nós tenha passado. Esqueça ou guarde-os no fundo mais fundo do poço grande que é o seu coração.

- Você me falta aqui entre os dedos das mãos.

- O amor é que tem essa mania de pertencer só aos bobos, mas um dia a gente aprende o jeito...

Wednesday 13 April 2011

Vou Esquecer da Homeopatia.

Escrito com o Cadu.

Ontem, por demasiadas vezes, tapei os olhos com muita força pra não me ver chorar.
Ando fragilizado por demais com essa minha vida. É quase como se ela não tivesse batido ou ido de encontro com o seu sentido. E não tem como estancar aquilo que a gente não sabe se tem cura. Tem? Já sei, você vai dizer que tem, e eu vou lhe dizer que sou hemofílico. E de novo você vai retrucar dizendo que tem. E eu só vou rir.
Vida é quase como morte. Não tem remédio.
A gente seca todinho pra ir sangrando de novo e de novo e de novo.
Perdi a minha fome de ter alguém. A fome – que era quase loucura – de transbordar e transpassar todas as coisas pra ter amor no colo. Sei lá se foi a idade que foi me deixando assim tão ácido e cheio de pesos maiores do que a minha força. Tudo é na flor da pele. Taca e re-taca, sabe?
Tô triste assim porque não tem ninguém pra me ser ócio. Queria eu dar aquelas cavalgadas bonitas que só quem tem felicidade sabe do prazer que dá.
Olha, tô aceitando de verdade que o amor e a vida são feito o ovo e a galinha.
Perdi sim a essência das coisas. Descobri, de maneira dura e com tantas perdas, que a vida sem amigos te faz encher um rio inteiro. E a gente escorre e recorre pra colo de pai e mãe que nem sempre vem. Tá tudo mesmo, indo pelos cantos tortos, incertos. Aqueles caminhos tortuosos e desconfiados que a vida faz e refaz o tempo todo.
Ruim mesmo é quando você, num desses caminhos, enfia o pé na merda. Aí você se despe, toma um banho, se lava inteirinho. Só não muda o corpo e alma - que é o que tenho tido vontade de fazer.
Eu sou a merda por onde as pessoas têm enfiado os pés. E pisam em mim com tanta força. Esquecem que sou mole e me acabo. Não reclamo, não. Me aceito assim mole, frágil, estragado. E quero, quero sim que alguém me aceite com todos os meus defeitos. Porque há em cada linha que escrevo, um outro que nunca vi, mas que sempre estará dentro de mim. Entende? Nem eu. Mas deve ser o outro escrevendo agora, ele deve saber.
Em mim, há desconhecido. Esse outro, mesmo. A necessidade de ser o outro, de ter o outro e de também me ser. Mudei tanto que me vejo em esboços embaçados, tanto pelo tempo, quanto pela orgia da vida. Pelo mormaço que o amor causou nestes anos. Tenho cá tantos sintomas. E dentre todos, o que mais me sufoca é a dor. Maldita essa senhora que sabe torcer o tempo de um jeito tão derretido que as horas não passam, só doem. Doem até aqueles milésimos de segundo que fazem a diferença pro vencedor da corrida. Mas sabe, eu não quero correr mais, então pode doer, Tempo, pode doer à vontade que eu vou fingir aqui comigo que não sinto nada, que tomei xilocaína ou qualquer droga que me faça esquecer o corpo. Fingir mesmo, e você nem vai notar. Sou melhor nisso do que aquela porcentagem enorme de mulheres que fingem orgasmo, porque olha, eu finjo que to vivendo, que to respirando e que eu ainda enxergo o céu. Tô fingindo agora mesmo que to fingindo. Aliás, vou me contradizer logo de vez e dizer que não sei fingir. E que ademais, vou ficar me repetindo. Agora eu só quero é vomitar esse sangue que não é mais meu, esse cheiro doente de quem tem um peito aberto e necrosado. Aposto que prometeu era bem mais feliz, porque aquele fígado ao menos se reconstituía. O coração não, ele só parece que não acaba nunca, mas apodrece e morre o tempo todo, sem renovação plena, porque a dor dobra mais o tempo pra que a águia venha devorar os pedaços. E não é só uma, são várias juntas. Águia, Urubu, e gente. Parece que gente gosta do cheiro de dor que é uma coisa.
Não quero concluir mais nada. Deixe eu ficar aqui quieto e ter um infarto pra deixar a frase pela metade. Ah, quem dera que fosse só desejar. Não, não quero mais morrer. Quero só não morrer vivo do jeito que estou. No fim, eu bem sei que a vida é minha AIDS e que eu não sou soropositivo. Tô aidético mesmo, vou durar menos que Cazuza. E pior, não tenho dinheiro pra pagar os Coquetéis e o hospital sumiu. Ou foi demolido. Eu não lembro mais.

Monday 4 April 2011

O defloramento da primavera.

Escreito com a Anne. Muito obrigada por conseguir me fazer versar, moça.

Bateu feito vento lamentado
pesado, meio assim, pingado
quase um suspiro amante jogado
nas armações frutíferas da amoreira
E se desfez no som desajustado
do doce ferver da chaleira.

E perdido na botoeira de um rapaz
um pedúnculo de flor, jazendo em paz
diferindo da tempestade audaz
que se lhe formava no peito.

E folhava este algo o livro-desfeito
estreitando o olhar pelas curvas letradas
e desmembrava palavras manchadas
pela marca d'um amor-perfeito.

E a confusão que tomava conta do efeito
aproveitando afundava-lhe os dentes
Saía-lhe da garganta o grito impertinente
de quem confessa verdade profana:
eu te amo, a alma declama!

Seja o vento que for, no tormento qualquer de dor
e ainda, acima de qualquer amor
Amo-te, ó doce dama, que se descama em flor
e a boca me falta quando chega esta lembrança
que é tanta e tão pouca me salta
que faz-me arder com pungente falta
do sussurro gritado do escritor.

Sunday 3 April 2011

Rápida ponderação sobre ignorados.

Era velho. Mas não tão velho. Beirava talvez os sessenta anos, mas as rugas escorregavam pela casa dos setenta e a fadiga fazia pesar mais uns duzentos anos em suas costas. Talvez por isso andasse curvado. Ou talvez fosse apenas um jeito de enganar a fome, escondendo o estômago do mundo. O corpo era de todo magro e a pele grudava nos ossos como que querendo proteger o que restava dele do frio que vinha não-sei-de-onde. Era homem de poucas palavras, por não ter com quem conversar. As unhas sujas e irregulares marcavam o fim dos dedos que se apoiavam na parede. Fedia. Chafurdava na própria desgraça: Era odioso.
Caminhava, então, com uns passos mortos de fome, meio mancos e cheios de seqüelas de um pé quebrado que o hospital nem sequer chegou a saber do estado. Tropeçava amiúde e se perdia entre as paredes mal pintadas do lado contrário às fachadas das lojas. Não sabia se olhar no espelho. Possuía umas feridas infeccionadas que lhe causavam febre, mas estas não se enxergavam. Não no corpo. Resgatava qualquer guimba de cigarro que ainda fosse fumável, aquele fumado pela metade que fizeram questão de descartar, feito ele: Era sombra.
E gritava. Gritava alto demais pra se ouvir. É que a boca não conseguia colocar pra fora o que a alma lamentava. Talvez os cachorros que o acompanhavam nas expedições aos latões de lixo – sempre após a hora do almoço, detrás dos restaurantes – escutassem qualquer coisa, ou talvez não o vissem também. Cobria-se de miséria e papelão nas noites mais frias, e respirava um ar doente, mas aliviado, quando sobrevivia a uma noite sem ataques de uns coturnos desdenhosos. E decerto isso era estranho, ele valorizava a vida mesmo que ela o tivesse apenas cuspido no mundo: Era louco.
Bem verdade que chegou a bater em crianças algumas vezes, mas é que há muito esquecera a própria idade. Costumava roubar os ossos que os cachorros – aqueles mesmos das latas de lixo – roíam até os últimos fiapinhos de carne. Invejava os recém nascidos rechonchudos que via nas propagandas de campanhas a favor da amamentação, tinham um colo feminino para se deitar, e alimento proveniente de um seio também devidamente alimentado. Se pudesse os arrancaria de lá a força e ocuparia o lugar. Curvava um pouco mais o corpo, com a idéia de ter alguma sustança, alguma substância no estômago, que lhe doía só de pensar: Era monstruoso.
Por fim, gostava de morrer nas noites de sono. Porque eram assim, feito morte. Vazias de sonho. E ele preferia assim, porque sem sonhos ele poderia descansar no comodismo de não ir atrás deles. Deitar-se no papelão. No fundo, ocupava-lhe um desejo imenso de correr atrás de um sonho, qualquer que fosse. Até mesmo aqueles de padaria, que no momento até lhe assentaria melhor. Mas todas as vezes que ele tentou, lhe fecharam a porta na cara, ninguém queria uma sombra fétida, uma morte adoentada e infecciosa por perto. Foi chutado até daqueles bares com uns sujeitinhos imundos. Esses o consideravam mais escória ainda, sabe-se lá por que. Jogado mil e uma vezes ao chão, quis esquecer-se de saber a levantar. E ainda levantou, de teimosia, mas sem vontade de voltar pela porta da frente. Desistiu: Era humano.

Inquilino.

Você vem
E então me pede
Pr'eu mudar de casa
Cozinha, quarto, e sala
E eu te digo que está bem.

Mas tem que ser aconchegante
Só pra caber a gente
E duas canecas
De chocolate
Quente.

Sunday 27 March 2011

Sobre o que a Cidade não esquece.

Sonhava certa menina no desabrochamento na infância
Em ganhar sorrisos e guardá-los em uma caixinha
E os plantaria, todos, para crescerem como convinha
Saía atrás dos mais bonitos, tamanha era sua ânsia

Era ainda um tanto pequena, de poucos habitantes
Incompleta, ainda, mas ainda assim, sorria
Para aqueles poucos seres cansados que via
Sabia que pronta só estaria n'um futuro ainda distante.

Aumentaram-se as construções de areia à beira da praia
As ondas agora esparsas, longe dela passavam
O corpo ia-se moldando, os cabelos encurtavam
E a inocência se despedia nos fiapos da minissaia

A boca perdeu o sorriso n'um beijo indesejado
E por esses dias, encontrou um menino
Que ria, tagarelava e dizia desatinos
Era um pobre maltrapilho pela vida apaixonado

Tal qual Chaplin colorido de matizes de primavera
Iluminava os becos dela com passinhos miúdos
Enchia a caixa da menina, de precioso conteúdo
Os lábios arqueados, uma vida quimera

Uma pena que o feixe de luz foi fugaz
E a arma enferrujada, o canivete vagabundo
Arrancou o ar do menino e o levou do mundo
Fecharam-se os olhos do pobre rapaz

Queria poder chorá-lo com as lágrimas de chuva
E inundar-se como a cidade em que vivia
Ela e aquele sonho que o fim da juventude esvazia
Varrendo aquele resto de maquiagem pela sarjeta da rua.

Monday 14 March 2011

E Ainda Resta Verde.

Doeu justamente na hora que pingou e ecoou aquele barulho úmido no canto da pia e eu já não me achava no vapor que deitava no espelho. Acho que me embacei demais, fechei minha própria tampa sem notar e agora estou feito aquele vidro de azeitonas que nem o papai consegue abrir. E vou lavar o rosto de novo, para ver se meus ouvidos param de escutar esse estrondo tremente e oco de tiro que eu nem sequer vi pousar no peito de quem se foi. Atingiu um outro peito, mas foi o meu que se esvaziou. Sorriu-me um desespero escuro, me observando ali do canto com olhos tão embaçados quanto o meu vapor, tentando imitar a Morte com um capuz preto e a aura cinzenta de uma chuva de ausências. O que foi mesmo que pingou?
Faltei hoje. Às obrigações acadêmicas, ao meu trabalho regado a partidinhas descompromissadas de xadrez. Faltei a mim mesmo para tentar desfazer do meu pescoço essa gravata invisível que alguém prendeu na maçaneta pra me sufocar se eu tentar sair. Além de tudo, me sinto meio manco. Pior, um manco sem bengala nem muletas. Não alcanço mais a caneta que mesmo sendo esferográfica, me cortaria fácil esses pulsos adormecidos de tinta se eu tentasse andar com as letras no papel. Estou tão confuso que estou me metendo a trocar os pés pelas mãos. Mas que fazer se é com as palavras escritas com o punho que me faço caminhar nos mundos alheios?
Continua a olhar pra mim o desespero e tem nos olhos a calma turva que implora que eu me perca. Não me sai do canto e me ocupa por inteiro, ainda assim. Tomara que ele saia logo e afaste de mim esses dedos finos e lambuzados dessa dor com a qual fosse rasgou minhas paredes já não muito resistentes. Se eu infeccionar, juro que morro sem olhá-lo nos olhos e afirmando com sussurros que a vida ainda vale de algo, mesmo que aquela bala tenha dito um sonoro não. Atiro também e sem silenciador, contra essa névoa espessa de lágrimas que pinga e morre no ralo. Quero que ecoe também um restinho de esperança que ainda resta no meu cartucho.

Tuesday 8 March 2011

Poeminha de Ferrovia.

Tomara que da próxima vez que revirares o bolso
Me encontre no meio das moedas de troco
Mas não me descarta, espera um bocado
Ainda tenho pra ti um versinho quebrado
Sem cor nem ritmo, meio desbotado.
Se gostares até te levo aonde os achei
Naqueles campos de poesia e das cores que te dei
E venha que uma outra estrofe eu redigirei
Venha, venha logo que eu sei que te faz bem
E que eu te ensino como se escreve um trem.

Friday 18 February 2011

As Questões Que Vêm Antes do Inverno.

A um futuro cientista social.

Formiga,
Como você tem consciência, nasci Cigarra. Nasci e desta forma permaneço, com a lente embutida n'alma para ver dessa minha forma multicor os dias se arrastando sem tempo definido. Pois bem, eis que canto, então. Como você diz, para distrair a vida dos tantos que caminham enfileirados. E convenhamos, a minha também. Segundo o seu pensamento de filósofo, as Cigarras tornam a vida mais suportável. Talvez a gente sirva pra respirar e desafogar os outros, porque olha que tem uma tempestade aqui dentro que está pior que essas chuvas que chegam à semana que vem.
Sabe, Formiga, estive observando seu ir e vir. Mas nunca lhe achei semelhante aqueles seus colegas de formigueiro. Cá da minha árvore eu reparo no seu andar variante e no jeito como você carrega as suas folhas. É diferente, sei que é. E também notei que, diferente das outras formigas, você volta e meia para ouvir as minhas cantorias, desde as mais agitadas até aquelas mais azuis, preguiçosas. Ouve sim, e até para, esbarra nos outros que eu já vi com esses olhos que a terra há de não tardar a comer. Ai, eu vi mesmo. E sabe que eu fiquei meio assustada? As formigas sempre me ignoraram demais, ou se limitavam a me pedir para trabalhar para não morrer de fome no inverno. Ora pois, eu sempre respondi que não queria e que é complicado pra uma cigarra viver até chegar o inverno.
E você? Você nunca me exigiu nada. Não ao menos com a voz. Porque eu senti já umas vezes os teus olhos me pedindo para cantar mais. Mais alto, mais música. E nossa, quando você vai e fica dias lá dentro do formigueiro, minha cantoria perde um pouco a graça e as minhas conversas com o vento de sobre como a natureza faz poesia se perde mais um tanto no farfalhar das árvores. Quando se encontra alguém pra ouvir, é para ela que se quer falar, entende?
Seu Formiga, eu te peço que não se irrite com as minhas alegações, mas lhe vejo como um revolucionário. A verdade é que você nasceu Cigarra e eu ainda não sei bem se lhe tiraram as asas, não. Acho que você está aí, só esperando. Só achismos, claro.


Fica aqui um bilhete bobo,

Cigarra.

Friday 11 February 2011

Segunda estrela, à direita.

Peguei tracinhos teus, a poesia que você me deixa ver, os pouquinhos de ti que reluziam mesmo diante da iluminação fraca e vim cá com minhas letrinhas te escrever um prosa. Talvez Sartre soubesse melhor de ti, já que te leu em Daniel. Mas eu volta e meia gosto de arriscar-me a descrever alheios que me formam. Como Rimbaud disse, o eu é outro. Talvez eu só esteja aqui te redigindo porque eu quero ser um pouco mais.
O que sei é que te escondes por vezes dentro daquelas fábulas. Não entendo bem se é por simples medo de crescer ou se é apenas pirraça da alma tua que é tão parecida com a de Che Guevara. Com suas devidas adaptações, claro, e viajando entre acordes de jazz e rock, sorrindo para o Bob Dylan - e devo dizer, sorrindo para ele junto comigo. A inocência revolucionária que te habita a alma desde um tempo que eu não sei lembrar. E tardes de domingo regadas às palavras de teus filósofos interiores. E quantas brigas eles já tiveram entre si. E tu? Tu sempre lá entre eles acabavas por ser atingido e sentir os vazios e as tristezas que a existência teima em plantar nas feridas que essas discussões abrem. Quando te aperta o peito essa sensação de sumir-se tu segues por outro caminho, voando com teu dedal que insistiram em por no teu dedo, pra te proteger do mal que for, da agulha que tentar te descer ao chão. E corres para Além-Mar, desfrutar um pouco dos teus mundos.
A verdade é que esqueces por vezes da poesia que te povoa, buscando achá-la no mundo. Deixe-me lembrar-te de não deixá-la fugir de ti, mas também não feche as tuas janelas, para não sufocar os versos. Ponha a tua música de novo e dance. Não esqueças de assinar teu nome, porque de vez em quando a assinatura lembra quem a gente é. Ou esqueças, dependendo do humor, do dia da semana, da cor que tu decidires usar. Não me deixa passar, por mais que tu gostes mais assim. Eu decido não ser nobre e sim eterna, mesmo que só por uns instantinhos. Só enquanto o correio demorar pra te levar a minha carta, quiçá.

Friday 21 January 2011

Ao Palavrear Hermético.

Mas você não sabe que irritação me tomou estar ali na sua frente a observar contigo o fogo lambendo as tuas folhas de versos. Ora, sacrilégio pôr fogo em ti! Fico imaginando se doeu, porque se fosse comigo, teria sido melhor me arrancar um braço com fogo. É, certamente iria machucar menos. Você bem sabe que foi como se eu tivesse ali sendo atirada no vermelho-laranja-amarelo das chamas que riam de barriga cheia. Olha, é bom que você escreva agora em dobro, cate as palavras que a fumaça está levando, cate de volta, vai! Desculpe, não precisa essa pressa toda, eu sei bem que te fluem palavras o tempo todo, só que as guarda. Guarda tudo, na verdade. E eu fico insistindo pra desfazer o laço da caixa e deixar sair. Gosto disso. Gosto quando você me deixa espiar e mais ainda quando me empurra lá pra dentro. O que você não sabia até há um tempinho é que eu sempre estie ali dentro, sabe? Eu também não sabia, não achava o interruptor pra me encontrar. O mais estranho é que a gente teve que se esbarrar pra achá-lo. Como você é mais alto, conseguiu alcançá-lo com mais facilidade que eu – que também não sou baixa. E aquela velha história que fica mais doce a cada vez que é repetida, olhos nos olhos e acabaram-se os dois.
Gosto da forma como você pronuncia-me. O meu nome, quando dito por você me parece tão único. Tão seu. Reafirma ao deslizar quatro letras minhas pelos lábios, toda a posse que tem de mim em todos os meus ângulos contraditoriamente circulares e infinitos. Esse nome que é tão igual... até lido de trás para frente. Mas na tua boca, ele difere. Você me diz tendo-me de dentro pra fora. Não me absorve nos olhos, mas me tem neles.
Estive pensando que não quero sair daqui de dentro e se for para sair, te viro do avesso pra não me perder no mundo. Não quero que ninguém mexa no interruptor e me deixe no escuro. Vê se me acorda se me ocorrer novamente um daqueles pesadelos, eles me fazem ter ataques de asma. Aí você me deixa dormir até mais tarde, pra me acordar aos beijos na hora do café da manhã. E eu toda desarrumada vou sorrir daquele jeito bobo que sempre sorrio pra ti. Vou usar suas roupas grandes demais pra mim e a gente pode até arriscar uma valsinha feita em xote que eu sei que você sabe dançar. E desculpe se eu pisar no seu pé.

Saturday 15 January 2011

À Dona Diná.

Desde o berço até os pequenos passos idosos no parque, carregava a alma em si. Coisa muito difícil de fazer, já que a maioria dos seres humanos prefere trocá-la por qualquer coisinha mais leve ou guardá-la em uma caixa que acaba por ser esquecida pelo relógio. E carregava-a orgulhosa, vestida com retalhos de outras, ricamente enfeitada com os valores próprios em vermelho e azul. Brilhantes? Sim, refletiam nos lábios, nos dentes desgastados de sorriso sincero.
Por fora, o corpo sustentava os oitenta anos com graciosidade. O corpinho pequeno e grisalho sorria todo e aqueles olhinhos ávidos contornados pelas rugas que o tempo fazia questão de entalhar no rostinho miúdo. Rostinho o qual exprimia uma experiência respeitosa, um ar até autoritário, porém benevolente. Era, até então, a soberana do parque, sentada em seu banquinho de madeira.
Tinha uma preferência incontida por poesias. Mais incontida ainda quando se tratava de Quintana. Os dedos ágeis vasculhavam com habilidade as páginas dos exemplares surrados dos diversos pedaços do poeta, os olhos gravavam na memória os versos favoritos. Recitava, então, com a voz mansa, para o menino curioso que espreitava por trás dos óculos que usava. Amizade inusitada, a deles. Iniciada assim, num banco de madeira, o solene trono da Senhorinha, entre versos e peças de xadrez. Ah, não mencionei? Ela era exímia jogadora da tal modalidade. Há quem diga que ela aprendeu com os Reis as melhores técnicas, as jogadas mais complexas, ou com os templários que erguiam tabuleiros para bolar estratégias... Oh, espere, ela só tem oitenta anos. É que eu sempre confundo a idade do corpo com a idade da alma, sabe? Essa que dá pra ver nos olhos. Voltemos ao xadrez e ao garoto. Ela fez questão de ensiná-lo cada uma das chaves de raciocínio que sabia e mostrar, ainda por cima, a chave do universo interior, que o menino não sabia mais como abrir. Ou talvez ele só tivesse perdido a dele e ela o ajudou a encontrar. E o pequeno – cujo tamanho já passava há muito o aceitável para a idade – aprendia atônito, em deleite com os pensamentos atirados a ele, as filosofias próprias, coloridas de cotidiano que ela espalhava pelo gramado das longas caminhadas que duravam tardes inteiras.
Ele crescia em existência por entre seus quiçás debatidos no calor do xeque-mate. A dita professora conseguia crescer mais ainda, expandir-se em universo e tornando-se majestosa na humildade de seus gestos. Diante daquelas mãos, as pecinhas do tabuleiro faziam-se diamante, flutuavam entre os quadrados alternados do tabuleiro e dançavam. Diante daquela figura o menino aprendia a viver as eras daquelas rugas, os milênios de ser alma. E ele ainda atreveu-se a ler essas linhas para vê-la transbordar.

Wednesday 5 January 2011

Síntese de Tom.

Escrito em conjunto, com o Léo.

Arredio. Não sei por que cargas d'água sinto-me como o mais reprimido dos ratos, aquele cujo esgoto escorre nas veias doentes. Quiçá, seja apenas impressão. Volta a mim aquela velha expressão de estar em "Buraco". Sim, aquela escuridão de bordas doloridas da qual eu vivo falando em todas as dimensões de mim. Contorço-me na cama, fazendo a madeira estalar e a sensação que tenho é que vou acordar toda a hospedaria. Não com o barulho do dito berço adulto, mas sim com o gritar frenético da minh'alma... Muda. Ora, ninguém irá ouvir-me. Nem boca tenho mais, deixarei de bobagem. Encolho-me nos pijamas para caber menos em mim.
Arredio. Eu gostava de ser ouvido. Ouvido por mim mesmo. Eu e meus pensamentos, minhas idéias, diálogos infinitos sobre mim. Sob mim. Mudei. Já que não fui capaz de me mudar. Nem sequer anunciar que planejava todos os dias, aos gritos, mudar-me. Cansei de aparentar. Escondo agora dentro de mim, só pra mim o meu sabe-se lá o que. Cansei de egoísmos. Sou o mesmo garoto que ainda precisa aprender poesia. Deveria eu, então, aprender poesia? Redondilhas, decassílabos, ritmo... Ora, seria isso mesmo poesia? Eu não quero ser assim, nunca soube encaixar-me em nada e... Encolho-me mais, dessa vez porque dói. Foi tão ruim assistir a peça de minha própria vida durante todo tempo. E essas veias entupidas com as minhas letras? Questiono meu egoísmo, desfaço-me de mim, mas isso nunca me foi um sacrifício, nunca me tive. Refaço meus filmes imaginários, minhas pinturas, tentando achar alguma mensagem subliminar, ali no canto, uma queimadura de cigarro qualquer que me explique. Explique o que? O que? Se soubesse o que busco, talvez encontrasse, ou ao menos teria algum caminho. Não sei a resposta, não sei a pergunta, mas sei que algo precisa ser solucionado se é que há um problema. E é quando vejo o castanho céu ao fim das tardes que se enche de vazio o meu peito/alma, ou talvez só o lado direito de meu cérebro. Enfim... É tão mais simples deixar que anoiteça e aproveitar o outro dia. Afinal, o castanho céu não dura. Gosto tanto dessa capacidade natural que o céu tem de mudar. É natural e sem questão. O Sol vai e eu sempre tenho a certeza que de alguma forma ele vai voltar. O lado direito do meu cérebro? Bom, ele lateja. Ou talvez eu o esteja confundindo com o gotejar de batidas do meu miocárdio afetado. Sabe o que sinto? Não, não sabe. Tenho pincéis e não tenho tintas. Quisera eu saber o que me falta para misturar meus pigmentos novamente. Mas eu nunca fui bom em saber do que tintas eram feitas. Foi daí que criei a teoria: As tintas são feitas de artistas e os artistas são feitos de tintas. Mesmo sem saber a procedência, ocupo-me da eficiência. Jogo-as, deito-as e depois as tiro em atos quase impensados - digo "quase", porque em minha mente roda a tese de que possam ser formulados em uma discreta parte da minha inconsciência ou consciência, chame como quiser -, os quais não vejo, mas sinto o cheiro. E ela, a tinta, sempre me diz o que sou e o que sinto. Sempre de forma clara, e ainda assim eu não compreendo. Talvez porque tenha esquecido de minhas próprias cores. Sou artista, preciso, então, ser feito delas.
Deixe-me cá, pintando a minha tela mental, com meu Impressionismo-surreal-dadaísta. Deixe-me pintar-me de mim e aí sair para pintar o mundo.