Sunday 3 April 2011

Rápida ponderação sobre ignorados.

Era velho. Mas não tão velho. Beirava talvez os sessenta anos, mas as rugas escorregavam pela casa dos setenta e a fadiga fazia pesar mais uns duzentos anos em suas costas. Talvez por isso andasse curvado. Ou talvez fosse apenas um jeito de enganar a fome, escondendo o estômago do mundo. O corpo era de todo magro e a pele grudava nos ossos como que querendo proteger o que restava dele do frio que vinha não-sei-de-onde. Era homem de poucas palavras, por não ter com quem conversar. As unhas sujas e irregulares marcavam o fim dos dedos que se apoiavam na parede. Fedia. Chafurdava na própria desgraça: Era odioso.
Caminhava, então, com uns passos mortos de fome, meio mancos e cheios de seqüelas de um pé quebrado que o hospital nem sequer chegou a saber do estado. Tropeçava amiúde e se perdia entre as paredes mal pintadas do lado contrário às fachadas das lojas. Não sabia se olhar no espelho. Possuía umas feridas infeccionadas que lhe causavam febre, mas estas não se enxergavam. Não no corpo. Resgatava qualquer guimba de cigarro que ainda fosse fumável, aquele fumado pela metade que fizeram questão de descartar, feito ele: Era sombra.
E gritava. Gritava alto demais pra se ouvir. É que a boca não conseguia colocar pra fora o que a alma lamentava. Talvez os cachorros que o acompanhavam nas expedições aos latões de lixo – sempre após a hora do almoço, detrás dos restaurantes – escutassem qualquer coisa, ou talvez não o vissem também. Cobria-se de miséria e papelão nas noites mais frias, e respirava um ar doente, mas aliviado, quando sobrevivia a uma noite sem ataques de uns coturnos desdenhosos. E decerto isso era estranho, ele valorizava a vida mesmo que ela o tivesse apenas cuspido no mundo: Era louco.
Bem verdade que chegou a bater em crianças algumas vezes, mas é que há muito esquecera a própria idade. Costumava roubar os ossos que os cachorros – aqueles mesmos das latas de lixo – roíam até os últimos fiapinhos de carne. Invejava os recém nascidos rechonchudos que via nas propagandas de campanhas a favor da amamentação, tinham um colo feminino para se deitar, e alimento proveniente de um seio também devidamente alimentado. Se pudesse os arrancaria de lá a força e ocuparia o lugar. Curvava um pouco mais o corpo, com a idéia de ter alguma sustança, alguma substância no estômago, que lhe doía só de pensar: Era monstruoso.
Por fim, gostava de morrer nas noites de sono. Porque eram assim, feito morte. Vazias de sonho. E ele preferia assim, porque sem sonhos ele poderia descansar no comodismo de não ir atrás deles. Deitar-se no papelão. No fundo, ocupava-lhe um desejo imenso de correr atrás de um sonho, qualquer que fosse. Até mesmo aqueles de padaria, que no momento até lhe assentaria melhor. Mas todas as vezes que ele tentou, lhe fecharam a porta na cara, ninguém queria uma sombra fétida, uma morte adoentada e infecciosa por perto. Foi chutado até daqueles bares com uns sujeitinhos imundos. Esses o consideravam mais escória ainda, sabe-se lá por que. Jogado mil e uma vezes ao chão, quis esquecer-se de saber a levantar. E ainda levantou, de teimosia, mas sem vontade de voltar pela porta da frente. Desistiu: Era humano.

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