Saturday 27 December 2014

descongestionante (ou leia a bula)

eu durmo debruçada sobre a febre e a dor de garganta
não me resta nem o esconderijo dos edifícios
nessa cidade onde o sol é mais quente e o céu mais baixo
carregado por prédios de seis andares                 
um e-mail escrito no verso de uma folha de urtiga
abre portas de percepção das minhas prateleiras de livros
em doses
pequenas tamanho copinho de xarope expectorante
e dentro deles bóia lacrimejando
a vontade de transformar a minha biblioteca num tylenol

Friday 28 November 2014

água de reuso

eu vi jesus de barbas louras de farmácia
embalado em papel de doce
tirar os tênis na praça da república e andar por cima de um mar de cacos de vidro
pra competir com o próprio recorde

corri um quarteirão praticando bruxarias em copos de uísque
como se houvessem fractais em pedras de gelo
como se a minha repetição fosse um mantra          
pra dentro dos olhos daquela menina
pra quem eu disse que era ela tão linda como um poema roubado de gullar
como um isqueiro que eu emprestei pro ladrão    
como matar a fome ou comprar vinho em padarias

eu vi jesus desaparecer de mãos dadas com qualquer coisa
e todos os copos ressuscitarem no lugar dele
um a cada três minutos para fora das garrafas

eu vi poetas amando os intestinos uns dos outros
esquecendo os próprios poemas e esquecendo de recarregar as baterias dos celulares

eu vi a vergonha ficando cega e desequilibrada
ouvindo a alma daquela mesma menina sentindo gritos
tão altos que eu precisaria sussurrar pra barreira do som tomar cuidado com os olhos dela

e eu vi são paulo
se deitar no chão da roosevelt para virar ponte
se fazer de recife tocando
coco de roda nos barcos em meio a chuva rala
da cidade que acontecia
debaixo da minha língua

Wednesday 15 October 2014

ventre louco

nenhuma vida eterna vale os meus instantes
de profanações desarticuladas
e a culpa de não ser santa não me tapa mais os ouvidos
ensurdecendo gritos de dor e mais dor e mais dor ainda
que uma vossa santidade me fez transformar em culpa
ah, eu arranco no dente as mãos que vierem
me censurar a nudez e a tagarelice

eu quero tornar a menstruação palavra sagrada
instrumento poético escorrendo pelas pernas
de todas as minhas ancestrais bruxas
que foram arrastadas pelos cabelos para as mortes diárias
em fogueiras feitas de vestidos longos
carregando a pena de ter nascido com uma boceta chamada
inferno
contornados por dedos doentes cobrando explicações
sobre um absorvente que vaza lágrimas vermelhas borradas de desgraça

quero estraçalhar o alfabeto com as mãos nuas
quero cobrir as línguas dos carrascos com facas
quero que me permitam o ódio
para que se leiam todas as estrias
do meu corpo irregular
eletrificado pela indisciplina da idade
pouco educado nas universidades de não violência
e que se emudeçam todos os discursos
em nome do fim do analfabetismo das
quatro letras que deveriam me habitar


Friday 10 October 2014

Sabá

a noite se banha na chuva grossa
que escorre do sangue da lua cheia além da conta
e dispara armas de gatilhos disfarçados de tesouras sem ponta
em espaços tortos de escoliose vinda dos pesos diferentes das mochilas
da bolsa amarela que se salpica toda
e do menino que parece gracioso mas é só uma criança insuportável
e os espaços se fecham entre as tosses de um pirata
que paira em

exílio

por talvez ter sido covarde demais para escrever cartas de resposta
ou para voltar pra casa com uma caravana de ciganos romenos
sem precisar esconder as tatuagens ou se vestir de estopa fingindo ser
um vestido de alegria vermelha feito o sangue da lua
e o pirata é só um espelho daquilo que se acovardou de verdade
preso no círculo esferográfico de uma caneta bic preta-cor-de-fundo

chove mais espesso, chovem as nuvens rubras de reflexo
e pesa nos exorcismos que se jogam no chão ensopado pelos
pequenos suicídios de equilibristas que cansaram da profissão
e os cortes antes cicatrizados no meio das coxas dos palhaços tristes
ardem pelo contato com roupas desconfortáveis de celofane e a música irritante
de jack in the box

o susto
coça nas entranhas doentes de gastrite
doentes de futuras overdoses e acompanhamento psiquiátrico diário
e comentários sobre como tudo ficará tão bem e não desista
que são obedientemente escutados enquanto a lua se esvazia em hemorragia
para se acumular em oceano-mar-vermelho embaixo de dez pés unidos ao nascer
de qualquer descrença temporária da sensação vertiginosa que é a compreensão de que

somos arquipélago

Monday 29 September 2014

What a lovely throat

a minha noite mal dormida
soletra o teu nome e a tua inicial tão décima primeira 
ou segunda
tão às beiras da marginal pinheiros
e ela puxa em gancho a minha língua que nunca soube
muito bem procurar outra que não a tua
com gosto taciturno de quem observa demais as minhas saias ciganas
de quem esquece demais da irresponsabilidade que meus 
olhos escuros carregam que se misturam com os teus olhos mais escuros ainda

tu desanda qualquer passo e tu me puxa pela língua
prende na languidez do teu nome a minha língua
e a boca gagueja nomes complicados mas soletra o meu com
os dedos apontados em todas as direções feito uma transfiguração 
dum plano sequencia de nosferatu
com a tua sombra enorme invadindo os cantos de um escuro que de assustador
só tem a analogia que eu acabei de fazer
e entre os escombros do que mora ainda no meu peito
os teus dedos compridos
que não cedem ao frio
meu corpo é palíndromo preso na tua língua
e do teu nome
é acrostico

Thursday 25 September 2014

cataclismo

Nada respira e momentaneamente eu até esqueço que é porque na verdade eu tenho asma e que eu sinto muito medo de pisadeiras porque elas tem cheiro e gosto e peso de desespero feito uma velha bem gorda e meio anã sentada no meu peito e como arde quando ela solta os cabelos em cima do meu próprio desespero e em cima dos tigres que eu derreti na minha parede. E eu já falei pro poeta cheio de palestinas, de faixas de gaza de respostas em poéticas de guerra que desencadear catarses é atividade principal de quem só se resta andando em carne viva. Arde com o álcool em cima da ferida ou quando tu dá um soco na parede e quebra as mãos e o muro não sai do lugar, mas qualquer lei da física deixa claro que tu socou a parede, mas é tu que tá sentindo o teu dedo sair do lugar e é tu que te ouve gritar antes de desmaiar porque nem pele tu tem mais pra ficar roxa antes do sangue jorrar por onde tu escreve e tu pensa em chamar alguém na esquina meio assim, ei meu chapa, fala aqui comigo, mas tu tá irremediavelmente desmaiado e afundado num soco no muro e quando tu acorda tem triângulos por todos os lados e tu já tá tão desconexo quanto o começo de um poema que era pra ser existencial e termina como um exercício vão de erotismo de quem tenta ser rebelde e até aí eu já abri as pernas pra qualquer outra coisa que não fosse tão violenta e qualquer coisa que não pareça muito comigo porque eu tenho medo dos espelhos terríveis que são olhos que abrigam mares inteiros e se qualquer coisa fizesse questão de me refletir eu ganharia sete anos de azar, menos sete vidas, menos dias sete, menos capítulos sete tocando a minha boca e o inferno riria na minha cara queimando as solas dos meus pés porque eu nunca viajei andando que nem um vagabundo iluminado e é na verdade porque a cidade é maldita na boca de deus, igual aos poetas que moram pra lá de mim e tu sabe que eu não cheguei aqui pra te dar tapas porque na verdade eu já te salpiquei todo de sangue porque tu, no fundo, sabe que sou só eu mesma esquizofrênica reverberando todos os cantos desgraçados e três pontos onde duas linhas se encontram que não passam de sexo e agora eu fecho as pernas porque me cansa que só me sobre hoje a noite uma masturbação de epifania e eu queria mesmo era estar sendo impiedosa jogando pedras no rio, fazendo ondas na água parada, tremulando cuspe pura bile até voltar a escrever tudo dentro das retinas de todos os poetas deitados num círculo de metal do marco zero e eu quero destruir a fragilidade do que não tenho mais e é frágil por só haver vazio e um copo meio cheio de bebedeira e o fato deu não conseguir deixar hematomas porque tenho punhos amarrados com a força de um monte de florzinhas vermelhas e tomara só que esse ruído todo pare de tentar explicar direito qualquer abismo.

Tuesday 23 September 2014

arritmias

vejo as pontes do recife batendo palmas submersas
ignorando a sujeira do capibaribe que passa por baixo do meu caminho de casa
e a boa vista está embaçada pela minha miopia
pela minha falta de sono pelas minhas olheiras pela lata de pitú que eu tomei
como se fosse uma coca-cola  tirada da minha mão pelo poeta invadido de palestinas
e do outro lado das pontes do recife eu vejo um bailarino fazendo teatros
plurais de conjuntos ritualísticos que eu peguei numa conversa pela metade
de intrusa
e vejo ainda um bairro sem nome, onde eu não conseguiria chegar de novo
e nesse lugar perdido entre as ruas
eu te vejo atravessando os espaços entre os dedos das minhas mãos
atravessando os espaços entre os dedos pouco recorrentes do tempo
do jeito que eu já tinha escrito na contracapa das minhas pálpebras
quando o amor era o resumo do vermelho que eu exergo quando fecho os olhos
ou quando eu giro tentando escapar um pouco da embriaguez pra ensinar pro meu alter ego masculino
materializado num nome calmo passos desconexos de dança que ele ensaia em cima de uma bicicleta
depois que eu paro de dividir estrofes para observar as usinas dos seus olhos
e as usinas dos teus olhos saberiam falar mais baixo
e as usinas dos teus olhos choram no final do caminho de casa
e as usinas dos teus olhos dormem encostadas desajeitadamente no ônibus que tu perdeu três vezes
e as usinas dos teus lábios dão choque nos meus desvios de olhar

a cela do instante me tem irremediavelmente acorrentada à minha irresponsabilidade
pra me jogar nos bracos do presente nesses momentos de consciência quase plena
onde o destino se revela acaso divino cujo único propósito é desfazer em impressões digitais e cicatrizes
a falta de graça do que é corriqueiro transformando madrugadas
em panelas de pressão explodindo estrelas no limiar do amanhecer onde eu me nego a ir pra casa
durante vinte
trinta
quarenta e cinco minutos
antes da claridade esconder as galáxias
e antes do sol alto se esquecer dentro dos nomes reluzentes dos ônibus que eu não leio
e enquanto tu caminha e eu acompanho as teus ombros
as coisas sem nome nascem e morrem
nas usinas dos seus olhos.

Thursday 18 September 2014

Arranha-céu

Ultimamente a cidade tem me engolido. Aberto uma boca enorme com dentes de edifício, cortando os pedaços do céu e me tragando sem gentileza nenhuma. Sinto isso todos os dias e mesmo que eu evite olhar praquele gigante azul acima da minha cabeça, é sempre essa impressão que eu tenho, duma boca enorme mastigando os meus ossos. Pensei que pudesse ser o frio e a minha saúde não anda muito boa e pra mim, hipocondríaco de internet, o frio nos ossos pode muito bem significar uma doença que em teoria só velhos pra lá dos seus sessenta anos tem. Sérgio riria da minha cara só por eu achar que vou chegar até depois do sessenta com os meus maus hábitos, com a minha falta de sono, com pegar o metrô errado toda vez, mesmo morando aqui desde criança.
Talvez tudo se resuma a falta de ritmo. Ou a falta de tempo que tô tendo pra fazer qualquer coisa que me interesse de verdade porque o mercado de trabalho não me deixa e toda aquela baboseira de dentro de redação de jornal tem me dado náuseas devido ao confinamento da minha mesinha.
Eu precisava de ouvidos pra me ouvir e os dele estão sempre ocupados com aqueles fones enormes. Precisava de olhos pra me ver um pouco, pra me dizer que eu tô realmente doente, mas os dele estão sempre ocupados olhando outras pessoas. Mãos, talvez. Mas as nossas não encaixam mais tem tempo.
Eu tô fazendo o certo.
Esse apartamento é bem maior do que eu pensava e sinceramente, ele nem vai notar bosta nenhuma que eu tirei daqui. Tirei o sofá e ele não vai notar. Tirei a tevê, mas ele não assistia, vai notar menos ainda. Queria que ele notasse que joguei tudo quanto foi bilhete fora, mas vou deixar um, então os outros ele não vai notar.
Porra, como é infeliz qualquer processo de despedida. Tô me levando embora junto com todas as minhas coisas e no fundo eu queria que ele fosse notar. Mas estamos os dois perdidos e eu fico escondido na vida dele. É um peso grande demais pra carregar.
Para de tremer a mãos, merda. Você já é canhoto e ainda tá tremendo? Vamo, termina logo esse bilhete, manda nas suas pernas, caminha pra longe desse poço de lama que tu tá dentro. Para de enxergar coisa boa em dor, isso nunca deu certo. Só por causa de sintonia? Não vale mais a pena. Anda. Escreve esse bilhete. Lê em voz alta.

"Antônio, não vou conseguir falar isso cara a cara, não dá. Sou fraco, sei lá. Preciso de alguém que me apoie e que seja presente. Tu é inconstante demais, avoado demais, desculpa. Quero uma coisa mais madura, sabe? Tô indo embora e sim, tinha que ser assim. Tu sabe que bilhete pra mim é coisa séria, né? Já peguei todas as minhas coisas pra ficar fácil, sabe? Pra nós dois.

Tchau e fica bem tá? Não me espera porque não dá mais. Beijo.

Fim do bilhete."

Boa, tu ainda não tá chorando copiosamente. Prega no espelho porque pra isso ele olha, talvez ele repare e vai. Tu esqueceu de colocar o livro do Drummond na caixa, mas deixa aí. Ele tava obcecado mesmo com aquele poema da pedra no meio do caminho, mesmo. Deixa pra ele reler.
Falar comigo assim funciona bastante. E eu não sou bom em dar ordens pra mim mesmo, mas agora parece funcionar muito bem. Meus pés me obedeceram, eu não vou voltar.
Mas droga, eu deveria ter escrito mais. Deveria ter enchido aquele espelho, pra ele não conseguir se ver. Deveria ter dito que queria que ele fosse menos displicente com a minha intensidade, com o meu excesso. Devia ter mandado ele parar de aparecer por aí mentindo pra não me levar pra reuniões de família. Devia dizer que queria ter ido pro enterro do pai dele, mas ele ficou tão insatisfeito com a minha suposição.
A gente tinha acabado há muito tempo, eu devia ter dito isso também. E que a desonestidade da gente residia em manter farrapos de rotina, linhas finas pra amarrar um elefante que pesava mais e mais pra baixo, me levando junto com a minha dependência emocional e a dele.
Me sinto afundando com pedras costuradas dentro do casaco e ao mesmo tempo, me sinto livre das mesquinharinhas, da falta. Porque talvez tudo seja ausência e eu não sabia conviver com a ausência, embora tenha sempre sido simpatizante da solidão. O problema é que eu não sei jogar xadrez com o que eu sinto e eu sempre dei tanta certeza que eu sempre ia estar ali, parado, esperando. Parado com agulhas embaixo das unhas todas as vezes que tu se desfazia na tua própria coisa nenhuma. Eu estive ali até não ter mais unhas, até ter levado choques, até sumir a minha língua dentro da boca, minha garganta cansada de gritar com volume baixo, porque ele sempre demorou demais pra dormir e eu não queria acordá-lo.
Faz meia hora que saí e já nem lembro mais do cheiro do apartamento. Sinal de que não vou sofrer.
É, Antônio. O descaso que te abrigava divorciou minha alma da tua. O universo da gente cabia dentro dum ovo de galinha. E a colisão dos nossos opostos dentro dum espaço tão pequeno implodiu as nossas não formadas estruturas. A casca rachou com o impacto, Antônio, e você nunca disse nada.
Você sempre foi bom em jogar pedras no meio do caminho.

Wednesday 10 September 2014

espasmo

no minuto que se estende
segue um trem em linha reta
de uma ponta a outra da américa do norte
levando uns poetas maltratados
maltrapilhos
sujíssimos das poeiras do mundo
de alma mais imunda ainda
ocupando espaços inimagináveis
amparados pela barra da saia
de uma dança cigana

no minuto que se rende
qualquer par de coisa se encontra
no finalzinho de horas mal
ditas
o espaço fica diminuído
e tem um pequeno apartamento pintado
de sinestesia e quebras-cabeça
e plurais indistintos
de acasos perfeitamente desorganizados
nas prateleiras mais altas

no minuto que se acaba
outras tantas voltas
começam.

Friday 29 August 2014

technicolor motion picture corporation

a desgraça da experiência divina
e o simulacro dos intestinos educados
domesticados
de humanos que cagam uns sobre os outros
numa perfeita metáfora vertical
vinda dos prédios dos bairros novos
pousados como naves espaciais nos cotidianos pacatos
não dialogam com o barulho da minha mente
que tapou os olhos ouvidos e demais orifícios de contato

pra aprender que o limo de tédio que cheira mal
nos prédios de classe média da zona norte
morrem no silêncio antes das dez da noite
que é quando em qualquer outro canto
começa
outro canto
pra desregular toda a pirâmide ideológica por curtas horas
onde sofre-se menos

os retratos que a minha mente revela com velocidade de polaroide
passam pela praia
debaixo d'água onde eu afogava quatro cristais
em ondas de energias pra maré levar e trazer
passam
pelos cantos mofados de uma cidade que nunca me pertenceu e
passam pelos copos todos de doses violentas de qualquer coisa
que eu vi em cartaz no centro semana passada

e tudo foge a vinte e quatro quadros por segundo
pra debaixo da minha língua que pergunta
quantos
quantos outros beijos desentrelaçados
eu ainda vou ter que fazer nó?
maldita falta de compreensão
dessa existência-hipérbato
coisa
confusa
invertida
mal dosada pra essa cara pouco barroca
das insônias carregadas embaixos dos meus olhos de 21 anos
e pouca paciência

e dentro da minha garganta tem essa falta de sentido
que morre nos olhos das pessoas
que desgasta uma folha virtual de ecrã e um poema
que se escreve mais rápido do que eu consigo pensar
mas cujos passos dormentes desmancham cadenciados
às ferrugens entre os meus dedos que fazem quase
todo o trabalho de digitação sem os meus olhos
ocupados demais olhando pra dentro dum pote de ametistas
pra evitar perguntas como

que me sobra dessa alma que só acha
que pode escrever livros em dias ímpares?

Wednesday 27 August 2014

itinerário

é que se eu começar um outro poema
assim, estranho, sem charme
talvez eu até consiga dizer melhor as coisas
porque é que
tudo funciona melhor sem enfeites

é que
enfeites são armadilhazinhas pesadas, não acha?
é que tu tem os pés manchados
da terra das outras terras, do além mar desbravado
pelos poetas
pelos arquitetos de igrejas derretidas
e um sotaque pesado
e cineastas vermelhos
e da sesta depois do almoço

é que eu não saberia escrever sobre essas manchas
nem sobre os seus olhos
e nem sobre alguma das tuas muitas línguas
mas ainda escrevo o mesmo sorriso
que tropeça em rotas intercontinentais

que se entregue às suas mãos, o mundo

apesar de tudo, você caminha
mesmo com o pé quebrado devido
a um acidente na porta da faculdade
[falta de caso descabido do sue mapa astral
com certeza]

e apesar do pé quebrado
ainda tenho de ti a primeira lembrança
de sapatos vermelhos
tênis
em par, sem gesso

e um sorriso igualmente vermelho
flutuando e,
apesar do pé quebrado
correndo
e fazendo brotar flores nos pequenos jardins improvisados
por nós mesmas
nos supermercados relutantes da cidade de são paulo
que eu fiz questão de fumar
e de tornar poesia

porque se tu estava lá, tinha que haver
jardim
e a mesma poesia que não muda

porque tu ainda carrega flores nos punhos

Monday 25 August 2014

sessenta minutos pra chegar em santos

to desengolindo toda a trilha sonora
que eu não compus
os arranjos todos muito hiperbólicos se aglutinam
nos sulcos da minha língua mordida pelo descaso
ácido
carregado por longos tantos anos que nem são meus
embaixo das unhas que a minha ansiedade roeu
e tudo que me cansa é essa minha ainda dificuldade de
vomitar qualquer coisa que não pareça uma ressaca
uma falta adolescente de empolgação
um desespero anuviado
e uma trilha sonora que eu não compus estancando qualquer coisa
e eu ando tão cansada de qualquer coisa

ainda sei que três meses tem muitas horas
mas eu nunca foi boa com cálculos imediatos
e tomara que esse espaço na comporta feita de pano
cobrindo a minha alma como uma fantasia de um filme infantil sobre o halloween
seja um anúncio de um futuro rasgo feito em poucos minutos
pelo estiletes invisíveis das línguas que me acompanham
e das viagens que eu não fiz

dessa varanda eu venço meus medos de alturas
mesmo que so de mentirinha
em cima dos meus joelhos trêmulos
onde observo São Paulo
que não arranha céus, mas os recorta
picotando o ar seco
e me vejo confortada
pela solidão que eu bisbilhoto
de uma janela aberta à minha frente
duma casa vazia
[apartamento pra alugar]

Wednesday 2 July 2014

Soma

Eu senti gosto de acerola na boca recém-vermelha dele. Resultado das frutas colhidas antes que outros bichos invadissem o tão bem cuidado pé favorito do quintal da casa. Ele ainda tem esse mesmo cheiro de frio na barriga no começo do dia - que pra mim nunca foi exatamente de manhã - e acerolas. Nunca entrou muito bem na minha cabeça esse quintal todo cheio de mudas de temperos e pés de umas frutinhas de infância no meio de São Paulo.
Do mesmo jeito que eu, a casa toda destoava da cidade. E é porque eu não conheço os cantos certos de Sampa, como ele dizia. Do mesmo jeito que não conheço os cantos certos de mim. De novo, ele me levou praquele bairro de prédios desafogados do cinza asmático dos arranha-céus. Dava pra notar desenhos nas nuvens mas eu preferia o gosto fresco da boca dele desenhando tons invisíveis sobre a minha, coreografando as mesmas constelações que o sol escondia.
No fim da tarde, ele queima. Queima com os lábios carimbados em mim e a voz escondida no meu ouvido jogada em sinfonias quase silenciosas de pequenos desejos sem tamanho. Se coubessem todos na palma de uma mão, não precisaríamos nunca voltar pra casa com a pressa colorida de quem tem a coluna atormentada por arrepios. No começo da noite, ele queima. E o começo da noite pode ser a madrugada inteira e o final dela amarrado no começo daquele mesmo sol que esconde as estrelas. As mãos quentes conversam com os dedos entre as minhas pernas e os lábios dele e os meus dentes e as minhas mãos também quentes. Nós não precisamos de sol na nossa vontade laranja de consumir o calor das nossas próprias mãos e dos corpos desregrados, das línguas passeantes e dos gostos favoritos nas pontas dos dedos. E até derreter, nós não precisamos de sol.
Fora do tempo, ele queima.

Friday 23 May 2014

I want you to see what happens to heroes...

Se fosse mais fácil utilizar travelings daqueles bem produzidos, eu começaria isso com um no maior estilo Gus Van Sant em Elefante, seguindo o personagem principal da cena. Mas aquela câmera é cara pra caralho e os trilhos mais ainda e meu material se resume a umas teclas de computador recém-formatado, o que estraga com qualquer possível romantismo idealizado pelos admirados de carrega nos dedos a vontade de viver para escrever - necessariamente nessa ordem. Além do mais, o desenvolvimento do personagem em questão pede uma estética mais suja, talvez um freehand onde você esquece do lugar que tem que ver, por conta da falta de foco e o excesso de movimento.   No fim das contas, a narrativa vai descambar para este caminho, mesmo, com olhos que, na verdade, vão enxergar melhor isso daqui projetando imagens no cinema cerebral sem uma captação externa que vá muito além das letras. Ah, o problema de orçamento...
Nessa parte aqui poderia entrar um fade ou um truquezinho de edição que remetesse à flashbacks, mas talvez fique num tom limpinho demais.
Corta. Um corte seco.
Começos de dias de ressaca tem um gosto de cor indefinida e um desagradável bafo matinal que não sai com primeiros bocejos. Os olhos tem que se preocupar em reaprender a focar objetos, regular o obturador e coisa e tal. Linguagem fotográfica não é muito o meu forte. Zoom In. Bem na cara do nosso personagem principal, talvez com uma trilha sonora tal qual a de Pulp Fiction quando referenciam o Zoom In dos Shaw Broters. Tã taran taraã. Só pra ele despertar bem.
Mas a ressaca sempre revira o estômago e dormir de cabeça pra baixo não ajuda. Ainda bem que nosso protagonista sabe fazer piadas muito bem enquadradas sobre a própria desgraça.
As velhas-novas tatuagens sem nenhum significados, pintam uma tela disforme, desigual e desequilibrada no exterior igualmente sortido dessas mesmas características. Por sorte, essas desajeitações formam um quadro interessantíssimo de se combinar com uma estética trash que tem lá suas legiões de fãs. E sobre um sorriso de dentes tortos deslizam ao mesmo tempo as temperanças psicóticas e as cordas bambas emocionais. Frankenstein, talvez. Nem todo monstro é mau, não é mesmo?
Deixa essa parte em preto e branco.
Alguns monstros tocam em bandas inspiradas em filmes - isso se encaixaria em metalinguagem cinematográfica, se eu estivesse filmando - e se desfazem em lapsos de ódio descalculado que desabam numa chuva ácida de saliva e socos.
Alguns monstros usam máscaras de luchadores só para se esconder de si mesmos, já que a identidade secreta é pouco secreta. Mas baseando-se em filmes também, a vontade de disfarçar-se de vez em quando ganha a de parecer coerente. Que convenhamos, no caso dele, não se manifesta com frequência.
Posso voltar a trabalhar com cores aqui, no instante em que se colocam, simultaneamente - ainda não pensei bem em como aproveitar os cortes dessa cena - a máscara no rosto e um doce na língua.
Porque monstros vivem em fantasias - induzidas ou não. Na sequência, um joystick nas mãos, porque quando se nasce na geração do nosso monstro, aprende-se que, às vezes- quando se é um monstro, a reclusão interior (e exterior) nos acolhe com nintendos.
Talvez aqui as tatuagens de videogames façam algum sentido. Ele poderia dizer duas frases com a narração em off. Ele poderia estar fazendo parte de um roteiro sobre como um cara decide sair por aí mascarado lutando contra bandidos, mas tenho a leve impressão que Mark Millar pensou mais rápido que eu nessa. Alan Moore até, antes dele.
Mas dizem que idéias boas nunca surgem de uma cabeça só, então quem sabe?
Entre os pedaços dum Frankeinstein que se faz de fragmentos de cinema e música, o trabalho diz de si que viver pra arte pode não dar resultado sempre, mas rende partes novas.
Mais e menos humanos. Transitam em um limiar de pouca realidade e baques com paredes tão reais quanto os vômitos-por-beber-demais depositados nos encontros delas com o chão. Afinal, monstros também tem estômago.
Ele acorda com aquele gosto de ressaca de novo na boca.
Um outro corte seco, sem sentido.
E monstros, nem sempre são monstros.
Tela preta, créditos barulhentos e erros de gravações pra quem ficar até depois.

Sunday 18 May 2014

Conta-gotas

arde quando penso em escrever
sobre tuas lágrimas

sobre o jeito que
tudo que se derrama de dentro
dos teus olhos
despenca umidamente
afogando teus poros

e como marca teu rosto em rastro
de água salgada
esparramando o mar em ondas de soluço
pelo pano da minha camisa
pelo cheiro da minha pele

sobre como são pequenos nós
em pingos d'água que não se desatam
e tecem fios minuciosos para puxar uns aos outros

ou sobre como arde quando penso em escrever
sobre as tuas lágrimas

porque choro.

Thursday 6 March 2014

Dormências

Ainda é como se borboletas dançassem em pedaços de mim, amarelas. Ainda sinto asas na ponta do meu nariz e você escorre entre os meus dedos e cochila devagarinho, acordando pela metade para piscar com esses cílios compridos que ventilam o quarto e montam legiões de fotos empilhadas no canto mais bagunçado de qualquer cômodo.
Meus pulmões são depósitos de borboletas. Elas moram já há um tempo em mim, por saberem que não tenho mais grades. Em dias que elas me preenchem todos os espaços o ar sai entrecortado traçando o ritmo ditado pelas mãos que agora dormem amparando o teu rosto numa tranquilidade de penumbra, num escuro de feixes dourados onde nadam pensamentos em forma de peixinhos coloridos. Eles também escorrem por mim, passeando entre os meus cabelos como se pudessem se abrigar. Mas incomoda os bichinhos que a minha cabeça faça tanto barulho. Antes de mim, eles já tinham reparado no jeito que você machucou as próprias mãos tantas vezes por desafiar-se, por criar abrigos indevidos em beiradas e tenho novamente um daqueles impulsos de te encher de beijos e nunca, nenhuma vez sequer você se assusta em meio ao despertar súbito que isso te causa. Nem com as minhas opiniões sobre caminhar no teto ou com a minha indisposição pra organização.
Teus olhos castanhos carregados me servem de marca-páginas das minhas leituras interiores de vez em quando, pra me lembrar da liberdade de ter essas ferramentas de vôo debatendo-se em mim, me inquietando o espírito, afastando mais os peixinhos que agora passeiam sonolentos em volta da luz do abajur e você ainda no limiar do sono diz que não faz sentido eles parecem mariposas em volta da luz que ainda está apagada.
Talvez eles estejam esperando o Sol.
Mas uma lâmpada não serve.
Estão ambos apagados por enquanto, não faz diferença.
E nesse pequeno silêncio pós diálogo, são feitos dois pedidos atendidos de prontidão pela boca de onde escapava o ar que eu esquecia e nos seus lábios e nos meus, ninguém sabe quem venceu a corrida para se encontrar primeiro.
As sedes convergem, os peixinhos saúdam a um sol que invade em onda tudo o que adormecia. Eles nos deixam com o vai e vem das ondas batendo nas cortinas que você não quis deixar completamente fechadas.
Catarse deve significar isso.
Tem borboletas nos meus pulmões.

Thursday 13 February 2014

maria das dores

eu quero meu corpo de volta
levem as roupas que vocês me obrigaram a usar
levem, levem todas
e esse cabelo que não é meu
podem raspar, ou então me deixem
deixá-lo crescer
da cabeça aos pés
porque eu pêlo não é vergonha
o meu corpo não é vergonha
o meu corpo não é de vocês

o meu corpo não é um artigo de loja
e vocês ainda o vendem
emprestam
trocam
tocam
[mesmo que não seja de vocês
mesmo que eu diga que não
mesmo que]
e dilaceram violentamente
o meu amor por mim

por isso eu quero meu corpo de volta
pra que seja meu, pra dar, pra não dar
pra raspar
dobrar
para engordar fora das fitas métricas nas quais vocês me enforcam

eu quero meu corpo de volta pra receber visitas desejadas
sem forçar as fechaduras
eu quero as minhas chaves, sem cópias, só minhas

que o meu corpo é minha casa.

Wednesday 12 February 2014

Buquê de parede

doze rosas
com sessenta espinhos
circulam duas vezes
pra morrer num dia
e dois
e três
e anos.

doze rosas
com sessenta espinhos
enfeitam de rugas
o rosto coberto
de ontens.

doze rosas
com sessenta espinhos
que pesam
no caixão.

enforcamento insone I

desenlaço
sem charme de espartilho
os cadarços
que eu esqueci
o que amarram

e tropeço
nessas mesmas cordas
que se fazem
forca

o sorriso arfa
e desce 
goela abaixo
pra quebrar o resto do pescoço

tudo morre
num nó cego

Ch ch ch ch changes

o tilintar
da rua da moeda
nos meus bolsos
contra os versos
co’outros versos
conta os versos
sem economizar
[pode ficar com o troco]

Tuesday 11 February 2014

poema em uma segunda-feira com cheiro de domingo

retorce essa tua teimosia
- que reflete a minha
entre os meus dedos
esmagando as nossas palmas uma contra a outra
pra não sobrar ar entre os vãos
que encaixam as minhas mãos e pernas
nas tuas

me mostra essa lista de desgostos
esse mesmo peito fechado pra eu untar
de mim mesma até desemperrar

deixa a poesia ser
de novo
esse pé-de-cabra que sirva pra alma
esse pão nosso de cada dia
nesse teu ato de profanar cadernos em branco

desembesta esses demônios, que eles brigam com os meus
contrários, gritantes e exaltados
e os teus que herdaram essa tua raiva quieta
- não se encarcera nas grades deles
e deixa o inferno se queimar sozinho

não disfarça esse rosto envergonhado
e lembra dos teus olhos fixos nos meus
nos teus
nos
nus
de quem?
quando eu já não sabia mais onde começava

[e se eu usasse batom, te mancharia]
e tudo é só um borrão
ou uma horta, ou um jardim

Monday 3 February 2014

Agrura

sangria desatada
das tripas do meu coração
e essa sensação de enjôo batendo em ondas
de uma maré pouco líquida contra as paredes do peito

angústia é esse apartamento pequeno
grande demais pra eu me perder
e esse cheiro de mim mesma esparramada pela cena do crime

antes fosse sangue e pó doendo nos meus hematomas
daquelas mesmas mordidas
daquelas coisas nenhumas
e tantas

antes fosse mais fácil se esconder atrás das pálpebras.

Monday 27 January 2014

Acrofobia II

Daqui de cima nada aparece muito. É bom poder fugir para um nono andar. Não dá pra fazer isso em Brasília que é a cidade-dos-seis-andares. O céu te engole antes que você consiga acessar uma panorâmica mental, uma lembrança de alguma viagem de avião na memória.
Mas daqui de cima nada aparece muito. Nada que me implica, claro. E está essa luz de fim de tarde nesse tom laranja forte misturado com azuis de começo de noite e aqui e ali sempre tem um lilás e um rosa. Essas coisas ainda me dão vontade de pintar. Numa cidade de prédios e árvores competindo por espaço, antes do horizonte, eu vejo as coisas assim, sem aparecer muito. Vejo gente e vejo esse trânsito que me atrasa pro trabalho.
Daqui eu não enxergo segredos.
E não é alto o suficiente pra ser um abismo, mas parece me olhar de volta. Esses nove andares, esse horizonte com refúgio no mar que eu não enxergo, mas que eu sei que está ali. Pelo salinidade que escorre dos meus olhos, que contém o mar de vez em quando.
Daqui eu não consigo ouvir segredos distintos. A cidade ainda quer me contar alguma coisa, eu seu porque os carros sussurram bem alto no contato com o asfalto da cor do meio dia.
Mas que horas eram mesmo?
Daqui eu não sinto o cheiro do Capibaribe. É só o meu, misturado ao de qualquer coisa que o vento escorre pelos andares abaixo. Qualquer coisa que dói em qualquer parte. Qualquer coisa que deveria ser o motivo deu estar aqui de frente pra mim mesma exposta sob a luz de postes que se repetem por quilômetros. Eu queria saber o que é. Talvez o que escorre andares abaixo sejam as horas.
Acho que vou deixar algo cair. Tenho essa impressão sempre que estou em lugares altos. Nem precisam ser altos demais, mas tenho. Sinto que qualquer coisa pode escorregar das minhas mãos, seja o que for, mas daqui a possibilidade não é tão assustadora por causa do colchão de copas de árvores que antecede o chão.
A queda parece macia.
E talvez seja eu me derrubando.

Sobre atemporalidades I

se eu te deixasse esquadrinhar o meu corpo com a tua minúcia
sei que tu me leria do mesmo jeito, num piscar de almas
e saberia olhar essa minha falta de decoro com a língua
essas minhas pernas tontas que ainda acreditam que é bonito
o meu desequilíbrio pouco charmoso, a minha labirintite emocional

tu me ouviria como música, com aquele teu ouvido de futuro saxofonista
atual baixista, guitarrista que enrola um pouco pra dançar
com os dedos
tu saberia ouvir os meus que compõem melodias nervosas se estalando uns contra os outros
se instalando em pedaços teus pra criar a liberdade em raiz

e tu me tocaria de olhos fechados, por saber que eu não tenho medo do escuro
por me abrigar na penumbra por causa dos meus outros medos mais claros
e teria todas as vezes as minhas frases repetidas sobre como teus olhos
como teus olhos são tão
teus olhos são tão mais bonitos por serem castanhos

tudo do jeito que tu já faz.

Tuesday 14 January 2014

Acrofobia

a civilidade
é uma vertical
onde as pessoas cagam
umas
sob(re)
as
outras.

Thursday 2 January 2014

Some Direction Home

Você é uma boa desculpa pra começar coisas boas. Na verdade, penso em você como um bom começo, todas as vezes. Todas as vezes e isso me soa meio triste, porque descaminhamos muitas vezes, e perdemos os ritmos, mas agora parecemos andar no mesmo passo. Isso não passa de um bilhete longo. Só não sei o quão longo ainda.
Percebe que estou usando muitos pontos ao te escrever? É que estou parando muito para pensar. Não porque te escrever não me faça fluir, porque você sabe que faz, é só que ultimamente a minha cabeça tem maquinado demais e minhas letras ficaram meio adormecidas no teclado.
Ainda sei que transito pelos dias de uma forma muito esquisita e que você, muitas vezes, não entende porque eu tenho tanta resistência com o tempo. Você sabe que eu ando fora de qualquer relógio, mas isso já te confundiu tanto e, apesar disso, tu nunca me colocou grades de ponteiro.
É que me assustam as precisões temporais. Não dá pra acreditar muito nelas e, pro tempo não me escapar pelos dedos, eu escapo pelos dedos do tempo. Dou as costas pra qualquer coisa que me faça sentir presa demais, ou que tente me organizar.
E você me disse que se apaixonou pelas minhas costas. Como se tivesse sido algo à primeira vista, como se antes de conseguirmos estar nós dois, não houvesse aquelas divergências de presentes e passados. Como se nada mais importasse, bem verdade, você se apaixonou pelas minhas costas e sabia tocá-las sem eu precisar dizer que era o meu carinho preferido. Você me percebia com os olhos fechados porque sabia que pra me entender essa seria, provavelmente, a primeira medida a se tomar. Ao mesmo tempo, os teus olhos sempre me observavam atentos.
Acontecemos ao costurar pedaços. Acontecemos apesar das minhas birras de achar que eu sempre chego atrasada, que estou errada e torta, que eu não deveria. E eu sei que eu errei muito, que doí e que nunca foi de propósito, mas eu não conseguia me entender nem me explicar e você conseguiu entender isso todas as vezes, conseguiu não ir embora, às vezes com muito custo. Tu foi uma estação no meio das idas e vindas de mim mesma. Tu ficou quando até eu não sabia mais ficar. Tu se fez casa pro meu corpo cansado, pros meu nome composto de dois pesos e um palíndromo. Tu me achou lendo ao contrário o que eu não arriscava mais.
Construímo-nos em meio a todas essas idas e vindas e eu me via errando de novo e de novo contigo e com os teus olhos e os via castanhos e depois se fechando pra se esforçar pra me enxergar. E os teus punhos machucados de novo e de novo por raivas que eu te fiz passar, de pedacinhos que eu quebrei. Pior é o teu silêncio. Esse jeito que tu abaixa os olhos e o tom de voz, me chama pelo nome e diz que vai dormir. Aprendi a te ler e entender que ficar palavreando hermeticamente quer dizer que tu está tentando fechar em ti uma explosão. Aprendi a lidar com isso de uma forma tropeçada, logo eu, que sou toda cheia de explosões e tenho que falar e não consigo me conter.
E tu nunca me colocou um dedo de culpa e tu nunca quis mudar o meu jeito de fazer, de não fazer, de ser desordem. Poucas vezes na vida eu vi tanto esforço pra me entender. Às vezes nem eu me esforçava tanto. Você sempre me segurou com os mesmos braços e me fez gostar de novo de pincéis e paletas de aquarela.
Lembro quando comecei a morar no teu sorriso. Me passa na memória te vendo agora respirar, o jeito como eu sorrio quando tu me beija e como você, desde sempre, achou isso bonitinho, porque sabe que eu rio porque evaporo em borboletâncias. Lembro quando você me perguntou se eu estava apaixonada e eu ri dizendo que assim não tem graça, porque estar apaixonada não é tão divertido quanto estar borboletando. E sim, eu estava borboletando. Em todos os nossos começos e todas as vezes que tu diz que sou chata naquele tom de falar besteira, ou quando reclama da comida vegetariana com a mesma voz e quando tu me chama pelo nome que escolheu me dar, que me coloca raiz, sem me tirar a alma de cigana e nem a liberdade dos meus passos feitos de tinta.
Desorganizamos mais ainda o mundo um do outro, de um jeito ora sutil, ora evidente e sem nenhuma cerimônia. Com a intensidade constante de antônimos que não são opostos em momento algum. Montamos e destruímos casa até entendermos a liberdade de caber. Morar sempre foi a liberdade de amar com sorrisos e gestos percebidos em caminhadas longas de mãos dadas e assuntos sem oráculo.
E quando eu comecei a morar no teu sorriso, quebrei seus relógios.