Thursday 18 September 2014

Arranha-céu

Ultimamente a cidade tem me engolido. Aberto uma boca enorme com dentes de edifício, cortando os pedaços do céu e me tragando sem gentileza nenhuma. Sinto isso todos os dias e mesmo que eu evite olhar praquele gigante azul acima da minha cabeça, é sempre essa impressão que eu tenho, duma boca enorme mastigando os meus ossos. Pensei que pudesse ser o frio e a minha saúde não anda muito boa e pra mim, hipocondríaco de internet, o frio nos ossos pode muito bem significar uma doença que em teoria só velhos pra lá dos seus sessenta anos tem. Sérgio riria da minha cara só por eu achar que vou chegar até depois do sessenta com os meus maus hábitos, com a minha falta de sono, com pegar o metrô errado toda vez, mesmo morando aqui desde criança.
Talvez tudo se resuma a falta de ritmo. Ou a falta de tempo que tô tendo pra fazer qualquer coisa que me interesse de verdade porque o mercado de trabalho não me deixa e toda aquela baboseira de dentro de redação de jornal tem me dado náuseas devido ao confinamento da minha mesinha.
Eu precisava de ouvidos pra me ouvir e os dele estão sempre ocupados com aqueles fones enormes. Precisava de olhos pra me ver um pouco, pra me dizer que eu tô realmente doente, mas os dele estão sempre ocupados olhando outras pessoas. Mãos, talvez. Mas as nossas não encaixam mais tem tempo.
Eu tô fazendo o certo.
Esse apartamento é bem maior do que eu pensava e sinceramente, ele nem vai notar bosta nenhuma que eu tirei daqui. Tirei o sofá e ele não vai notar. Tirei a tevê, mas ele não assistia, vai notar menos ainda. Queria que ele notasse que joguei tudo quanto foi bilhete fora, mas vou deixar um, então os outros ele não vai notar.
Porra, como é infeliz qualquer processo de despedida. Tô me levando embora junto com todas as minhas coisas e no fundo eu queria que ele fosse notar. Mas estamos os dois perdidos e eu fico escondido na vida dele. É um peso grande demais pra carregar.
Para de tremer a mãos, merda. Você já é canhoto e ainda tá tremendo? Vamo, termina logo esse bilhete, manda nas suas pernas, caminha pra longe desse poço de lama que tu tá dentro. Para de enxergar coisa boa em dor, isso nunca deu certo. Só por causa de sintonia? Não vale mais a pena. Anda. Escreve esse bilhete. Lê em voz alta.

"Antônio, não vou conseguir falar isso cara a cara, não dá. Sou fraco, sei lá. Preciso de alguém que me apoie e que seja presente. Tu é inconstante demais, avoado demais, desculpa. Quero uma coisa mais madura, sabe? Tô indo embora e sim, tinha que ser assim. Tu sabe que bilhete pra mim é coisa séria, né? Já peguei todas as minhas coisas pra ficar fácil, sabe? Pra nós dois.

Tchau e fica bem tá? Não me espera porque não dá mais. Beijo.

Fim do bilhete."

Boa, tu ainda não tá chorando copiosamente. Prega no espelho porque pra isso ele olha, talvez ele repare e vai. Tu esqueceu de colocar o livro do Drummond na caixa, mas deixa aí. Ele tava obcecado mesmo com aquele poema da pedra no meio do caminho, mesmo. Deixa pra ele reler.
Falar comigo assim funciona bastante. E eu não sou bom em dar ordens pra mim mesmo, mas agora parece funcionar muito bem. Meus pés me obedeceram, eu não vou voltar.
Mas droga, eu deveria ter escrito mais. Deveria ter enchido aquele espelho, pra ele não conseguir se ver. Deveria ter dito que queria que ele fosse menos displicente com a minha intensidade, com o meu excesso. Devia ter mandado ele parar de aparecer por aí mentindo pra não me levar pra reuniões de família. Devia dizer que queria ter ido pro enterro do pai dele, mas ele ficou tão insatisfeito com a minha suposição.
A gente tinha acabado há muito tempo, eu devia ter dito isso também. E que a desonestidade da gente residia em manter farrapos de rotina, linhas finas pra amarrar um elefante que pesava mais e mais pra baixo, me levando junto com a minha dependência emocional e a dele.
Me sinto afundando com pedras costuradas dentro do casaco e ao mesmo tempo, me sinto livre das mesquinharinhas, da falta. Porque talvez tudo seja ausência e eu não sabia conviver com a ausência, embora tenha sempre sido simpatizante da solidão. O problema é que eu não sei jogar xadrez com o que eu sinto e eu sempre dei tanta certeza que eu sempre ia estar ali, parado, esperando. Parado com agulhas embaixo das unhas todas as vezes que tu se desfazia na tua própria coisa nenhuma. Eu estive ali até não ter mais unhas, até ter levado choques, até sumir a minha língua dentro da boca, minha garganta cansada de gritar com volume baixo, porque ele sempre demorou demais pra dormir e eu não queria acordá-lo.
Faz meia hora que saí e já nem lembro mais do cheiro do apartamento. Sinal de que não vou sofrer.
É, Antônio. O descaso que te abrigava divorciou minha alma da tua. O universo da gente cabia dentro dum ovo de galinha. E a colisão dos nossos opostos dentro dum espaço tão pequeno implodiu as nossas não formadas estruturas. A casca rachou com o impacto, Antônio, e você nunca disse nada.
Você sempre foi bom em jogar pedras no meio do caminho.

No comments:

Post a Comment