Friday 22 February 2013

Nota sobre o autor

Eu meio que não sei o que escrever aqui. Não sou boa em colocar as botas de primeira pessoa pra ser o meu próprio eu-lírico. Acho que por isso que me coloco em pedaços de tudo o que escrevo. Acho que isso tudo sou eu, em linhas.
Sou do tipo que sente. Sente muito - talvez em todos os sentidos da expressão.
É pra ser uma biografia, certo? Tá, eu nasci (em São Luís) longe daqui de onde moro e talvez por isso eu não goste muito de Brasília (imagina só como é ter o mar diante dos olhos quando a gente nasce e tirarem ele de você pra você ter que carregar esse cerrado nas retinas? - fechadas ou abertas). Enfim, vim pra cá não muito pequena, mas ainda era criança e sempre fui meio tímida, então foi complicado pra mim. Estudei boa parte da vida em escola Católica, já briguei com meu professor de filosofia. Também estudei numa escola evangélica e foi um saco.
Não tenho paciência pra religião nem pra política e odeio a reforma ortográfica.
Quero ir embora de Brasília o quanto antes e futuro é uma coisa que me apavora.
Tenho medo de aranhas. Mas assim, medo mesmo.
Gosto de colocar post-it nas coisas dos meus amigos, gosto de repetir falas de filmes, tenho uma puta dificuldade em decorar nomes de personagens de primeira e queria escrever que nem o Júlio Cortázar. O Batman é uma das únicas coisas que eu elegi como favorita, porque eu odeio escolher coisas favoritas, mas não tem como quando se trata de super-heróis.
Sou frustrada porque eu sempre quis fazer artes marciais, mas na época que ia entrar, torceram meu pé e eu além de não poder entrar no kung fu, tive que parar de dançar - que era algo que eu fazia já há oito anos. E também porque eu sempre quis ser o Shiryu nas brincadeiras de Cavaleiros do Zodíaco, mas não deixavam porque ele era homem, e aí eu tinha que ser o Shun (porque apesar de ser homem ele tinha armadura rosa).
Observo a vida às vezes dividida e esparramada em ângulos desconhecidos até por mim e não consigo entender muito bem o protocolo social.
Acho que tenho 20 anos e acho que tenho 1,72 de altura (não gosto de ser alta). Não ponho pilha nos relógios que tem no meu quarto, mas acho-os lindos (um deles é de Watchmen e o outro feito com disco de vinil). Faço aniversário dia 23 de outubro e tenho um Frankenstein de pelúcia.
Creio que não falei nada relevante.
Ah, minha primeira palavra foi "árvore". E se eu tivesse um superpoder, seria telecinese.

Improviso

segura a rima
antes que ela pule
de cima
do muro

suicídio poético
é ponta de lápis quebrado
e tédio.

Thursday 7 February 2013

Círculos Cromáticos


Meus post-its estão acabando de novo, mas eu não irei acordá-lo pra irmos comprar mais porque sei que ele demorou a pegar no sono. Ele sempre demora demais pra dormir quando os olhos ficam opacos, quase como se o lado de dentro tivesse apagado a luz e alguma parte dele tivesse medo do escuro. Dói em mim quando isso acontece porque moram pulsares no fundo dos olhos escuros e quando eu não consigo vê-los, a companhia elétrica corta a luz dentro de umas partes de mim. Muita coisa na gente era assim, aliás. Como um conjunto de peças, como uma caixinha de música e se algo para, a música sai errado ou a bailarina não dança. É assim: se fica escuro pra ele, falta luz em mim também. Nós dois sempre fomos meio quebrados, mas, como ele dizia, eu era o motor e ele as engrenagens e desse jeito as coisas ficavam menos tortas e tudo parecia funcionar de um jeito simples demais pra explicar pros outros.
Sempre que acordo no meio da madrugada, é pra escrever bilhetinhos pra ele não esquecer de ligar o interruptor e o projetor super 8 que carrega por trás dos olhos por trás dos óculos, mas como minhas notinhas estão acabando, vou ter que escrever nele ou em mim, pra ele lembrar. Ou então no espelho, com algum batom (se bem que o único batom que tem em casa é o que a gente usa pra fazer maquiagens de Crimson Ghost ou de Eric Draven e eu não queria estragar). Ou posso esperá-lo acordar... Mas não vou aguentar, então eu escrevo os poucos bilhetinhos que faltam, falando do café da manhã e também da minha indisposição com o laranja naquela dia - que eu espero que mude a tarde pra conseguir terminar de pintar alguma coisa que eu ainda não comecei - e caminho de volta pro quarto tentando não derrubar nada pra não acordar os cachorros. O Ernesto, nosso gato, sempre sabe quando eu acordo e me acena com a cauda um pouquinho antes d'eu chegar onde quero. Fecho a porta do quarto devagar e tomo cuidado pra não pisar em nenhum dos sorrisos espalhados pelo chão.
Ele carrega constelações inteiras nos pulmões e enquanto respira, consigo imaginá-las todas. As minhas, carrego nas pontas dos dedos e sei que não fazem cócegas nele, a não ser quando elas decidem morar nos meus lábios. Ele dorme meio encolhido, acho que doeu depois que eu saí, mas não acordou. E mesmo que tenha se encolhido, ainda tem o meu lugar ali na cama, ali, tão simetricamente ajustado ao lugar dele e eu sei exatamente como deitar. Meus esforços para fazê-lo sem provocar um semi-despertar dele são inúteis, mas não me alarmo - ele não vai acordar, só quase. É só pra gente se ajeitar de novo, mesmo que não precise. O nariz dele encosta no meu pescoço e eu arrepio uma vez e de novo quando suas mãos passam pela minha cintura pra me abraçar. Ele se esconde em mim e eu nele e o mundo funciona todo como deveria. Torto, como nós dois e nosso como a gente.
De vez em quando, quando ele acorda sozinho, se machuca de dentro pra fora, talvez porque quando a luz apaga dentro dos olhos, ele saia esbarrando em si mesmo e isso faz o ar faltar e o suor correr frio do lado de fora. Meu coração sempre samba errado quando isso acontece e eu tiro a camisa - normalmente uma das que são dele - e encosto a barriga e os seios em suas costas, pra arrumar os nossos ritmos. Devagar, as coisas respiram de novo e ele se acalma. Dessa vez, me pergunta se eu havia conseguido mexer nos meus pincéis e eu digo que o laranja estava de mal comigo, ou o contrário e que eu tinha escutado uma música mais cedo que falava sobre o Van Gogh. Perguntei a ele se sabia se o Vincent gostava de laranja. Ele diz que devia gostar e que eu devia experimentar torta de abóboras. Eu digo que sei fazer e que faria uma pra ele, mais gostosa do que todas as que ele havia comido (eu teria que arrumar alguma receita na internet, uma hora dessas).
É. Talvez laranja não fosse tão ruim. Talvez eu desenhasse algo mais tarde, mas me aborrecia a idéia de levantar da cama justo quando as pontas dos meus dedos desenham alguma coisa nas costas das mãos dele. Gosto de quando a gente pinta os segredos com letras que ninguém lê nas costas das mãos. Ninguém além de mim, depois que sorrio com os lábios dele. E ele tem mãos bonitas e um bocado maiores que as minhas, que parecem de criança. Cheias de calos, as mãos dele tocam tudo de um jeito diferente e eu gosto de tê-las para mim. De andar de mãos tão dadas que elas se derretem uma na outra. Acho que foi por isso que o Ernesto escolheu a gente pra ser o casal adotivo dele. Sim, porque o Ernesto é o gato mais cinza de nome mais cinza ainda que se tem notícia e ele não aceitaria ser adotado, então adotou a nós dois, porque gostava do jeito que meus anéis e os calos nas mãos dele pareciam se completar por entre os encaixes dos nossos dedos. O Ernesto tem um lado meloso.
Gosto de misturar temperos quando eu cozinho, mas não lembro nunca os nomes deles direito. Lembro mais pelo cheiro, o que fica bom com o que. Misturar cheiros é bom, também e às vezes mais fácil que misturar cores. Eu gosto de mesclar o cheiro dele no meu pra gente ficar impresso nos travesseiros, ou, quando ele tem medo, pincelar beijos de leve pelo seu corpo, com tinta feita de uma mistura só minha de saliva e sussurro, pra criar incensos que o acalmam. É uma alquimia, mas é segredo nosso. Tenho uma maletinha de incensos na cabeça, todos bem anotados, outros nem tanto, mas aí eu improviso ingredientes. 
Talvez amanhã eu acorde gostando de laranja, porque em um certo ponto, um bem certinho pendurado no relógio que não existe, o vermelho e o amarelo se escondem tão bem um no outro que o laranja aparece feito um cobertor pra esconder a fuga das duas outras cores. Talvez eu goste de laranja agora, porque me lembra a gente e porque eu vou fazer torta de abóbora pro almoço.
Seus olhos agora parecem tão acesos que só consigo sorrir com todas as estrelas que tenho pra ele e pro laranja-torta-de-abóbora em sua boca. É bom vê-lo respirar calmo, tão mais ameno do que quando se afoga. Eu tenho falta de ar de vez quando, a sensação de mergulhar é estranha. Uma vez, lendo o Jogo da Amarelinha pela milésima vez, eu sorri dos rios metafísicos que o Cortázar colocava ali, pro Oliveira se afogar. Afogamentos. É como se nós nos salvássemos constantemente de afogamentos, estando mergulhados um no outro. Marquei essa passagem duas vezes e sorri porque eu às vezes me via na Maga. A Maga era meio cheia de ângulos demais. Mas eu gosto disso. E gosto de rios metafísicos. Acho que eu conseguiria mergulhar neles sem ficar com falta de ar e até mergulhar mais fundo que ele. Ou então, ele me deixaria ganhar, porque no fim, não fazia muita diferença. Mergulhar em si mesmo era mais apavorante sozinho e eu achava engraçado competir, não que eu fosse boa naquilo. Há sempre um ponto em que a gente se perde no mergulho, mas alguma hora tudo torna a fazer sentido e outra hora a gente emerge - eu não sei explicar essas coisas, também. E voltamos bem na hora em que o vermelho e o amarelo se juntam numa linha meio de aquarela borrada de azuis e de lábios. Tudo fica laranja e Monet reclama que a gente está trocando beijos bem na frente do que ele quer pintar.
De vez em quando ele funcionava com extremos, porque gostava de mergulhar, mas ficava horas olhando o fogo, como se uma hora fosse confundí-lo com a água e fosse tentar praticar apnéia em línguas inflamadas. Ir fundo no fogo, será que tinha como? Pergunta boba.
Digo a ele que um amigo meu, que é poeta, diz que as cores são roupas da luz e que se eu me importasse com roupas, invejaria a luz por conseguir se vestir tão bem. O sorriso pós-torta-de-abóbora dele me dá ainda mais certeza de que eu gosto de laranja hoje. Me diz que ainda bem que eu não me importo com roupas, porque eu fico mais bonita nas dele, de todo jeito.
Não dá vontade de sair dos nossos anacronismos mas essa é a hora d'eu ir me encontrar com pessoas de açúcar - que não pegam chuva pra tinta não escorrer e borrar a maquiagem - que me cansam - e implorar pro Dalí ou o Escher me tirarem do tempo. 
Mas é bem rápido, digo a ele com vontade de deixar o corpo em casa, junto com o resto que nem sai de lá. Nunca é bem rápido, mas a gente tenta se convencer.
Droga, engarrafamento. Cadê a minha bombinha pra asma?
Ele vai ter falta de ar. E meus pulmões já doem. E fica tudo escuro em mim e agora tem os braços dele apertando o que resta dos meus pedaços pra eu não sumir e tudo o que eu consigo dizer antes de dormir são uns pedidos pra que ele não vá embora. "Mas eu moro aqui", ele diz e eu consigo respirar. Mesmo que eu fizesse tudo errado, mesmo que eu ficasse mais quebrada do que ele, eu ainda ia conseguir respirar todas as vezes que ele me beijava os olhos. Laranja agora, queima e não é um calor suave, calor de dois corpos juntos ou um calor de cidade litorânea. É um calor distante dessa cidade seca. 
Laranja com gosto de cinza, descendo pela garganta com força, empurrando as paredes do esôfago e fazendo sangrar. 

Desfaço o devaneio rápido - eu sempre tive esse mal de ser meio distraída. Tinham umas placas na rua e vento fazendo barulho nos ouvidos. Uma mãozinha estende um giz de cera laranja me dizendo alguma coisinha com os olhos. Quer uma história e um desenho. Quer saber uma cor favorita. Outro desenho. Não, hoje não é laranja.

Tuesday 5 February 2013

Doze


Escrevo mentalmente, imaginando as coisas mais como desenhos do que como linhas escritas. De qualquer forma, não uso caderno com pauta. Meu traço nunca foi muito preciso, gosto de dar impressões não-fiéis pra que as pessoas liguem pontos, imaginem o quiserem da falta de exatidão. Escrevo mentalmente desfazendo a ideia de desenhar por pura preguiça, porque digitar é mais fácil e meu ânimo é pouco. Termino de redigir o primeiro parágrafo e paro pra fazer desenhos no box embaçado. Escorri pela parede até sentar no chão há uns quinze minutos atrás, quando liguei o chuveiro quente no mais quente possível. Esqueço o primeiro parágrafo, aperto as têmporas pra sair alguma idéia que seja. Sinto desfazer entre os meus dedos, pensamentos que eu não queria ter deixado escapar. Droga, devo ter apertado a cabeça com muita força já que agora, me escorre dos olhos também o que eu não queria deixar escapar. Mas a água quente leva embora o gosto salgado antes que eu possa sentir de verdade, embora eu consiga definir bem o que toca meu rosto. Decido sair só depois que meus dedos enruguem. Aí, os espelhos todos já estariam suficientemente vestidos de vapor e eu poderia me livrar de olhar pra dentro e voltar pro quarto sem maiores perturbações.
Tudo aqui funciona numa ordem-sem-ordem onde, na verdade, eu poderia muito bem estar deitada no teto e onde as paredes mudas pedem pra ser lidas. E o tempo que se instalara ali, fingindo não querer nada, pesando a ponto de parecer parafusado à superfície que o sustenta.
O fato de não poder mudá-lo de lugar sempre me irritou muito. Ele fica ali, parado na minha prateleira, sem me dar espaço pra guardar mais livros, - me obrigando a comprar mais prateleiras - girando num círculo interior tão constante e preciso que me dá náusea existencial.
Penso em mais um parágrafo e anoto palavras-chave. Papel sem pauta. O tempo corre sozinho sem sair do lugar que me incomoda. Além do mais, ele nunca se basta, embora sempre se canse e prefira sempre um tempo além dele mesmo. E, ah, como reclama! Reclama do clima que está mais quente ou mais frio, ou mais seco ou mais úmido e que a cidade ainda é nova demais. Reclama que não se fazem mais histórias como antigamente.
Pra mim, sempre foi pior do que saber que não se fazem mais histórias como antigamente, saber que não se escrevem histórias do agora, como agora. Há um pudor pelo hoje que eu não consigo entender, como se tivéssemos que vestir hoje de ontem pra parecer mais bonito. Como se algo tivesse que ser bonito, mesmo. Falta enxergar que hoje pode ser tão charmoso. Tão charmoso quanto todas as camadas de um vestido do século XIX. As pernas das prostitutas continuam abertas, afinal de contas. As pessoas só decidiram dizer - ou fazer - isso com mais evidência. Sexo é poesia de meio-de-rua e as pessoas pedem mais amor por favor, pra sentimentalizar o cimento. Sim, falta charme no hoje. Mas quem disse que as coisas tem que ser charmosas? Talvez falte esse encanto porque quem enxerga são os meus olhos cansados de tentar ver alguma coisa. Se fosse ontem, enxergariam da mesma forma os vestidos das moças recatadas e as pernas das prostitutas. Tudo sem graça, ainda que burlesco, ainda que rebuscado.
Alguém disse alguma coisa, afinal de contas? O tempo é mudo.
Esqueci o que tinha escrito no começo. Os desenhos andam se apagando mais rápido.