Tuesday 26 October 2010

Pequeno Devaneio Felino.

Um ronronar baixinho corta a constância do som da chuva tamborilando pelas vidraças esverdeadas. Eu paro de concentrar-me naquele cheiro de terra para reparar em como aquele gatinho se abraça aos amores do tal companheiro.
Quisera eu ser assim parecida com um animal como aquele garoto de suéter parecia com seu gato. Quiçá eu realmente me pareça com algum, devo ter aquela coisa de confiar demais assim, feito aqueles cachorrinhos. Eu não espreito, eu não esqueço e esqueço demais, eu me prendo.
Ficar observando os dedinhos de piano do meu poeta acariciando o pelo branco do gatinho foi nostálgico. Lembrei-me de quando, há uns dez anos, ficávamos olhando aquele animalzinho tão pequeno, atrapalhar-se no próprio andar. Ah, quem diria que ele ia tornar-se gracioso e dócil, cheio de namoradinhas e tão repleto de arte. O gato, obviamente.
Gatos tem alguma coisa musical que muito me impressiona. Eles tem uma mania de andar entre acordes, ou deslizar feito as notas de um compositor admirável, que invadem a sala sem sequer ser notada pelos ouvidos pouco atentos. Gatos são descompromissados e preguiçosos e nem por isso deixar de ter um ar prepotente e um tanto quanto irritante.
Eu gosto de gatos, sabe? Não, não é que eu não goste de cachorros, eu até tenho um. Mas os cachorros são tão incondicionais. Eles vão amar o dono em qualquer circunstância. Agora gatos, gatos são mais seletivos. Eles estão ali, enroscados no canto deles, independentes do que você vá fazer. Qualquer coisa, se eles enjoarem, somem. Ficam ali, com os olhos atentos a observar, esperando que entendam o que os globos brilhantes e alertas dizem: "Vamos, me dê só uma, uma razão para eu te amar, para eu não ir embora, porque eu sei que não preciso de você, mas eu quero precisar". Não sei, talvez eu esteja apenas divagando por gostar das órbitas coloridas fincadas em mim, ou do ronronar constante, seja de carinho, seja de ciúmes. Mas é eu gosto de gatos.

Saturday 9 October 2010

Jorge.

É uma pré-disposição deveras conhecida da humanidade esta de ter rixas com o patrão. Sim, tão conhecida é que até os ditos cujos sabem de sua existência.
Entre pilhas de relatórios empresariais e jornalísticos, ele fica. A camisa social suada e apertada vestindo a massa calorenta e abundante, a gravata enforcando o pescoço roliço, e o cabelo seboso penteado para trás. Jorge trabalhava; com a mão esquerda - sim, era canhoto - escrevia uma anotação qualquer em sua agenda estufada de papéis, com a direita, segurava um bolo de cobertura respingante. Entreteve-se alguns segundos lambendo os dedos antes de decidir ir lavar as mãos. Odiava ter que passar pela sala do tão irritante superior. Não era exatamente o patrão, mas sim o "recruta de estagiários", que coordenava o setor. Sentia sempre que aqueles óculos estavam sobre ele, vigiando os passos (só uma impressão tola e mal fundamentada).
Eis que no percurso até o fim do corredor pequeno demais para o tamanho dele, ouviu a risada do tal chefe. Os pés flácidos moveram-se com o maior cuidado possível, impulsionados por uma curiosidade sem razão.
Dentro do escritório iluminado, grande e arejado, cabelos desgrenhados e cacheados, dançavam para lá e para cá conforme a risada fluía. A mão magricela dava tapinhas no joelho coberto pela calça jeans. Jorge parou ali, em frente à porta, com o olhar condenador de bispo da inquisição que foi notado quase que de imediato.
- Ei, Jorge, o que você está olhando aí?
- Ahnm, nada.
- Bom, então volte ao trabalho, homem!
"Voltar ao trabalho?", pensou, "Deixa eu te falar uma coisa seu..." E conforme o pensamento crescia o peito estufava e o indicador erguia-se no ar, triunfante em posição de conquistador. E a voz falha:
- Sim, senhor.
Voltou à salinha. Esqueceu de lavar as mãos.