Sunday 29 December 2013

Bula

paixão instantânea
é amor em pó
afeto engarrafado
pra ser distribuído
em doses
não-homeopáticas
atemporais

[nunca manter fora do alcance de pessoas]

Tuesday 19 November 2013

Ameisenhaufen

Faltavam quinze minutos pro meio dia de uma quarta feira calorenta e engordurada. Tinha esse cara imenso nessa fila maior ainda pra comprar passagens de ônibus - desses caras com músculos estranhos que parecem cheios de água. Cogitou a possibilidade de espetar o gigante com uma agulha e imaginou cada um daqueles músculos disfuncionalmente hipertrofiados estourando que nem balões d'água. Andou até o final da fila rindo do pensamento idiota que acabara de ter, calculando, em outra nuvem de pensamento, quantas vezes por dia, tinha esses insights cinematográficos excessivamente fantasiosos. Numa outra nuvem, lembrava que tinha que comprar as passagens pra dali a algumas horas. Tirou da bolsa a carteira por mania, porque ainda faltava muito pra que precisasse efetivamente fazer isso. Sentia-se suar por baixo da camisa - péssimo dia pra escolher usar preto. O lugar inteiro parecia mais quente e o Sol invadia as janelas com uma violência imprópria à luz.
Dez minutos. Nada da fila andar. Continuava quente. O cara imenso trocava o peso do corpo de uma perna pra outra e bufava de impaciência - e calor. Ele era tão enorme que dava pra supor seus movimentos mesmo na distância em que estavam.
- Com licença...
Demora um pouco até conseguir estourar todas as nuvens de pensamento. Palavras, pra alguém distraído, não funcionam tão bem quanto agulhas.
- Com licença...?
- Ahnm... Hã?
- Você saberia me dizer o último horário de ônibus pra Urd?
- Urd?
Na verdade, havia pensado "Mas o que, diabos, uma pessoa quer ir no último ônibus pro passado?", mas não era da sua conta, então deixou-se repetir por reflexo.
- Sim, sim... assunto de família.
- Ah...
- Então...?
- Hã?
- O último ônibus...
- Ah! Urd, né? Desculpa, moça, mas eu não faço idéia. Minha licença pra transitar no tempo já está vencida há tempos. Meu passaporte temporal tá jogado pelas coisas de casa, sabe como é...
- Coisa de gente nova...
- Deve ser.
Sentiu que a senhora engataria numa conversa de fila. Ah! Como detestava conversas de fila.
- E você tá indo pra onde?
- Pegando o ônibus com o horário mais próximo pra estação de Hagal. Disseram que é bom passar essa época quente por lá. Paisagens bonitas...
- E não precisa de documento pra ir?
- Esses eu tenho ainda.
Burocracia continuava sendo o seu ponto fraco. Forçou-se a não encher nenhuma nuvem de pensamentos que o dispersasse demais. Pegou o comunicador no bolso e sorriu disfarçadamente ao olhar as horas.
- Que foto bonita essa. Vocês fazem um casal muito bonitinho.
- Ah, brigada...
- São um casal, né?
- Tecnicamente...
- São bonitinhos, de qualquer jeito.
- Eu até concordo.
Riu. Tinham-se ido mais minutos. A fila andara um pouco. Reparou que estava mais perto do sujeito enorme. É, um grupo de pessoas tinha saído da fila. Na certa, desistiram por causa do calor que aumentava. Que horas seriam agora? Tinha acabado de ver e já se esquecera. As ondas de calor sufocam o ambiente, fazendo todo mundo dentro do terminal se afogar aos poucos no Sol.
"Essa merda deveria ter um ar-condicionado", pensa. O grandalhão continua brincando de trocar o peso nas pernas e parece que todo o terminal brinca com ele. Ou talvez o calor esteja dando essa impressão. O peso indo pra lá, e pra cá equilibrado em pernas invisíveis.
Um baque.
O cara grandalhão tinha caído no chão. Era uma cena curiosa, um brutamonte daquele sendo amparando por outras pessoinhas tão menores. Aqueles músculos deviam pesar um monte. Imagina carregar litros e litros de água.. pesa bastante.
Começou a pensar sobre isso, mas evitou que a ideia corresse solta: precisava ir lá ajudar o cara. Claro. Tinha feito todos aqueles cursos de realidade virtual sobre como sobreviver a acidentes nucleares e situação de risco e entre essas coisas havia um treinamento básico de primeiros socorros. Devia servir.
Enquanto andava em direção ao homem, percebia que a aglomeração de gente se desfazia e que largaram o cara no chão. Mais perto, viu duas mocinhas que ajudaram a amparar a queda abanando as mãos. O calor havia aumentado a ponto de causar falta de ar e estava extremamente claro. Por um segundo, achou que estivesse em Vênus, que mesmo com todas as barreiras solares continuava extremamente quente. Se ajoelhou pra tentar ver o que acontecia ao homem. As pessoas em volta se sentavam, passavam mal. A fila se dispersava, os atendentes eletrônicos tossiam. E o cara parecia estar fervendo. Fervendo como se toda a água que imaginara estar abrigada naqueles músculos estivesse entrando em ebulição. E emanava calor. Fervia. Era difícil encostar nele àquela temperatura e nenhum treinamento havia ensinado alguma coisa assim. O Sol parecia se concentrar nele e...
Ele pegou fogo.
A temperatura no terminal estava alta o suficiente para ativar os alarmes de incêndio e a água começar a cair do teto um pouco antes da combustão do sujeito, que se desfez ali na frente de todo mundo numa pasta de carne, ossos e seja lá o que tinha naquele monte de músculos esturricados e ensopados.
Imediatamente o calor diminuiu e o Sol pareceu voltar pro lugar.
Seguiu-se o procedimento padrão de retirada das pessoas da área e da entrada das equipes táticas de polícia, a de saúde e a de bem estar público pra limparem a sujeira. Infelizmente o terminal teria que ser fechado até segunda ordem para uma apuração. Infelizmente, as testemunhas teriam que depor. Teria que ligar e dizer que amor, vamos ter que adiar a viagem, mas eu prometo que é no máximo até amanhã. Teria que dizer que é que um cara explodiu aqui, amor, meio que pegou fogo e não, não é só figurativamente. Teria que se explicar melhor, claro. Foi pra um canto mais afastado pra usar o comunicador. Estava sob os olhares dos andróides da equipe de segurança. Explicou-se rápido e impaciente, mas sem maiores complicações. Voltou pra perto das testemunhas e ficou esperando a sua vez abrindo e enchendo nuvem após nuvem de pensamentos com anotações mentais de como o tempo deveria funcionar errado quando se está esperando pra depor, ou esperando qualquer coisa ou como deveria voltar a acreditar em superstições dos Antigos, porque tinha quebrado um espelho na semana anterior.
As horas aqui transcorrem atropeladas, depõe como se deve, tentando não demonstrar a impaciência que sente. Vai embora e volta para casa pelos túneis, porque sabe como é, é sempre mais rápido pelos túneis.
Os blocos televisivos nas praças de encontro dos entre os túneis mostravam os relatos das pessoas sobre os incidentes. Os hologramas das pessoas mostrando como fora horrível ver o homem ferver e como ficou quente de repente e rumores sobre o apocalipse. Enfim. Tudo na imprensa havia se convertido em discussões sobre o ocorrido. Obviamente se negara a dar entrevistas porque não se sentia bem com câmeras e menos ainda com a reprodução - dizem que você sempre parece ter engordado quando te reproduzem em holograma. Riu daquilo tudo como se não houvesse acontecido consigo ou como se fosse um sonho distante ou talvez só um pensamento daqueles mais fantasiosos. Só acreditava mesmo que fora algo real porque estava voltando pra casa sem as passagens. Falou pouco durante o jantar e foi dormir mais cedo que de costume.
- Cê precisa ver isso! - acordou sem entender direito o que estava acontecendo.
- Quê?
- Lembra do cara que pegou fogo?
Queria não lembrar.
- Que que tem?
- Tá acontecendo na cidade toda?
- O cara?
- Não, bocó! Pessoas pegando fogo do nada. O calor aumentando e tudo mais, igualzinho você me contou. Na cidade in-tei-ra!
Esfregou os olhos pra girar as manivelas cerebrais e ter certeza que tinha entendido direito.
- Como assim?
- Aquilo que aconteceu ontem com o cara do terminal tá acontecendo pela cidade inteira e ninguém sabe o que é.
Sentou na cama e olhou pela janela. Tudo parecia em ordem.
- Como cê sabe?
- Vi hoje de manhã no jornal, olha só.
Foi até a sala e trouxe a cápsula do jornal do dia. Executou os comandos de sempre para ativar a projeção e correu os dedos até o tópico de notícias que lhes interessava.
- Tá vendo aqui?
- Uhnm...
- Tive um pouco de medo por nós dois. Acho que hoje vou em outro terminal comprar passagens.
- Pode ser...
Voltou a deitar. Acreditou ter cochilado porque fechou os olhos e só os abriu quando sentiu um beijo no rosto.
- Vou acabar me atrasando hoje. Escuta, vamos sair hoje a noite, tá?
- Pra onde?
- A gente decide na hora.
Riu. Era sempre assim. Fez que sim com a cabeça e deixou-se estar na cama. Ouviu a porta bater e pensou em dormir mais um pouco. Sentia cansaço em todas as partes, sem motivo aparente. Talvez estivesse adoecendo. Em todo caso, precisava sair.
Aprontou-se rápido. Não sentia fome, então deixou o café da manhã de lado - por preguiça de preparar.
As coisas pareciam normais na rua. "Esses jornalistas exageram qualquer merda.", pensava, enquanto atravessava a galeria principal. Deteve-se um pouco em frente aos painéis de horários de ônibus e trens. Teria que ir ao terceiro centro, que não era muito longe, para assinar os documentos acerca de direitos autorais. Acharia melhor assinar de casa, mas exigiam a presença física de todos os autores e fotógrafos. Bobagem.
Passou boa parte do dia perambulando pela cidade, aproveitando as recém-chegadas férias. Tentou pensar em algum lugar pra ir à noite, mas ficou com preguiça de desenvolver um raciocínio acerca disso, sabendo que iriam acabar em qualquer lugar que estava bom, estavam juntos.
Andava pela parte mais exposta de um bairro de livrarias eletrônicas, olhava pra cima quando um oficial de limpeza gritou para que não esbarrasse na faixa de perímetro elétrica. Escapou por pouco. A cena remontava o dia de ontem em sua cabeça: era um corpo meio esturricado, meio gosmento e parecia ser tão grande quanto o do grandalhão do outro dia. Evitou perguntas, sabia o que tinha acontecido. Limitou-se a pedir desculpas pela falta de atenção e saiu andando. O estômago embrulhado, a garganta fechada e os olhos ardendo. Não muito longe dali a visão se repetia, mas agora se via diante de uma fileira de coisas disformes e gosmentas dentro do perímetro de segurança. Sentiu ânsia. Tremia. Chegou com dificuldade à galeria e se passaram dois mil anos nos cinco minutos que teve que esperar para o trem chegar para que pudesse ir para casa. Assim que se acomodou no interior do trem, segurou com força o comunicador e precisava ligar e amor, tá tudo bem com você? Volta pra casa logo ou só oi, amor, só queria ter certeza que cê tá bem. Provavelmente escutaria risadas e você tá mesmo achando que eu vou pegar fogo? E queria ouvir essas risadas prováveis.
Dito e feito.
Alívio momentâneo.
Chegou em casa como se tivesse passado meses fora. Ainda não tinha ninguém lá. Estava só. O sol já se punha, ainda bem.
Vinte minutos.
A maçaneta gira. Abraçam-se.
- Ei, calma que eu tô aqui.
- Vi muito corpos hoje, acho que vou tomar alguma coisa pra enjôo.
- Eu pego pra você, vai. Se deita um pouco.
- Ainda vamos sair?
- Espera você melhorar e a gente vê.
- Uhnm...
- Que foi?
Deu de ombros.
- Acho que só cansaço. Andei muito hoje.
- Assinou os papéis?
- Sim. Odeio essa...
- Essa merda dessa burocracia. Já sei.
Riram.
- Mas se cê quer saber... eu senti muito medo, também. Uma unidade flutuante pegou fogo hoje.
- Evitei passar perto de unidades televisivas ou de informação. O mundo tava com medo hoje.
- Quer saber, Acho melhor a gente nem sair.
- Também acho.
- Ei...
- Hã...
- Esqueci as passagens.
- Não tem problema, a gente vê isso amanhã.
Dormiram tarde, mas ficaram muito tempo em silêncio, esperando o sono chegar. Tudo parecia acabar e todos pareciam se dar conta disso. Não queriam ver noticiários, ter acesso aos jornais ou coisa nenhuma. Não queriam saber o que estava acontecendo.
- Acorda, vai... porque cê dorme tão pesado?
- Não durmo, não...
- Eu tô com medo.
Sentiu que a voz que lhe falavra tremia.
- Ei, o que foi?
- Tá tudo pegando fogo lá fora.
E estava. A cidade toda parecia estar em chamas. Ônibus e trens flutuavam chamuscando. As unidades de contato queimavam contra o chão. Tudo aquilo em dois dias.
- Vamos sair daqui hoje. Se não for pra Hagal, pode ser outra estação em Saturno, mas vamos.
Levantou-se. Sentiu-se febril.
Risadas.
Um conjunto de gargantas ria, movendo todos os tentáculos e junto com eles as galáxias penduradas na barba ainda infantil.
- Tem que ser mais pra esquerda! Parece que não enxerga, né? E você ainda tem um par de olhos a mais!
Isso quem dizia era um outro conjunto de gargantas - que não eram bem gargantas e as palavras não eram exatamente ditas.
Os tentáculos que pertenciam ao primeiro conjunto de gargantas se abriam se esticavam e as ventosas expeliam aquela coisa transparente. Um dos tentáculos deslizava e se contorcia assumindo a forma e a posição de uma lupa e a qualquer-coisa transparente se enrijecia. Aprontavam a mira para aquela estrela milhões de vezes maior que o Sol. Viam os seres correndo do feixe de luz que se formava, viam aquelas coisinhas queimando, estalando. E continuavam rindo. Eram criaturinhas fascinantes. Não sabiam se organizar muito bem, mas desenvolveram mecanismos razoavelmente avançados para se locomover e trabalhar. Era meio impressionante, pra bichinhos tão pequenos.
Continuavam rindo.
Um terceiro conjunto de gargantas começava a brigar, a uma distância razoável, com as outras duas que pareceram se aborrecer.
Enfim, largaram a brincadeira.
Era hora do jantar.

Monday 11 November 2013

Atemporalidade adverbial

eu ainda não desfiz a mala
por hábito de procrastinar
e pra não deixar fugir o restinho do cheiro
da casa e dos pelos de gato
que me restam aqui

eu ainda tenho a mania
de apertar forte a tua mão
pra atravessar a rua
mesmo que agora
meus dedos não segurem nada
[mas ainda aperto os dedos
quebrados de verso
da tua mão
quando passo pelas casas assombradas]

eu ainda prefiro não encostar na parede gelada
e desprefiro a cama vazia
com uma só alma
e lençóis

é que eu ainda
não aprendi a dormir sozinha
sem tuas pernas pra dar nó
nas minhas

e eu ainda peço beijo
só pela vontade
que corre pela janela
sem ir embora de mim

eu que ainda não aprendi como se rima
ainda sinto algumas delas escapulirem
e se jogarem, suicidas
em forma de lágrima
dos meus olhos de poeta míope
poeta-quase
enxergando
os meus próprios desencontros

eu, eu mesma
que ainda queria poder pedir
pra me calçarem os sapatos
desamarro tudo mais ainda
pro coração não apertar mais

eu.
ainda.

Wednesday 16 October 2013

Aqueles poemas que se escrevem sozinhos

Desfazer uma lembrança
que ainda não se faz presente na memória
é enterrar os neurônios
em sinapses emocionais entre as pernas
da alma

e se te digo em um idioma
e meio
é porque só sei atravessar as frases
e não a rua
pra te encontrar em estacionamentos de cidade grande
dizendo poemas com os olhos e todos
os dentes alinhados num sorriso
cravado no braço da vida
e mordendo com força
mesmo que a dor seja só tua

agora te escrevo aqui
com esses meus olhos que olham de longe
pra esses teus dentes que mordem a vida
com um sorriso satisfeito
da garganta que arde com o gosto do próprio ser
te escrevo aqui
sem o romantismo dos cafés e dos versos em guardanapos
escrevo pra ti
sem rimar, entre os espaços mal metrificados
então te escolho às cegas

no tato das palavras
e da língua que eu não falo
- das muitas que tu tem
escrevo o teu sorriso sem te conhecer os olhos

Wednesday 9 October 2013

Não mais que três dias

dentro de si não cabem
pontes de destino
mal atravessadas
e nomeadas
com vocativos mortos

ainda zomba dos que dizem cartas
e sortes
quando no mundo se vive
sem bolas de cristal

sobram missas mal rezadas e
pés de apóstolos obscenamente sujos
que ninguém quer lavar

e se ri.

mas não cobra cachê de criador
tampouco templos de adoração
e menos ainda bate em portas alheias pedindo
a aceitação dos céticos

render-se à verdades mancas?
para que?
o acaso é o deus perfeito

Wednesday 18 September 2013

O não-tão-velho safado

"Não passo dum quadrúpede que aprendeu a andar nas patas traseiras. Me comporto com muito cuidado, pois, se cair, caio de quatro, fico no meu natural e não levanto mais."
(Barão de Itararé)

Henrique não está resfriado. Na verdade, a última vez que ele ficou doente foi por conta de uma chuva que pegou levando uma turista recém-chegada para conhecer Porto Alegre. “Não tenho preferência com cidade debaixo de chuva, mas parece que do lado de uma guria, chovendo ou não, a cidade fica mais bonita ainda. O problema é que não pode faltar café.”, citação de em todas as conversas consigo mesmo, andando em casa (vezes as quais ele diz estar falando com o gato) e parte da boa e velha lábia no diálogo com a recém-chegada.
Henrique Ribeiro da Silva tem no sangue uma cretinice gaúcha muito peculiar e nada genérica, apesar do nome sugerir o contrário. Membro da maior família do país, adquiriu durante a vida uma desenvoltura com o mundo que brinca com o samba, mas na verdade tá mais pra blues. Aos vinte e três anos que carrega no lombo, somam-se mais cinco, que vieram junto com os dezesseis anos e uma puberdade desregrada: Sara, a menina dos olhos do gaúcho auto-entitulado o mais canalha do Rio Grande e do Brasil, com esses cinco anos de um charme que adora ballet e aprende a gostar de rock aos poucos – blues ainda a deixa meio indisposta, mas quem sabe quando for mais velha. Sara tem os olhos atentos e curiosos típicos da idade e mais um pouco da sagacidade herdada do pai pra questões de afronta aos hábitos católicos.
Depois de toda a experiência jurídica pra organizar os demais pormenores de guarda, fica decidido que ele pode vê-la finais de semanas, feriados, e quando mais tiver vontade. Pagar pensão e todas aquelas obrigações adultas chegaram cedo, sem muito alarde. Terminando a semana, seria dia de vê-la de novo. Mas ainda era quarta-feira, e com o fuzuê escolar, os horários ficavam apertados pra guriazinha.
Porto Alegre cabe na palma da mão do Henrique, e a Osvaldo Aranha é a linha da vida que corre na palma. Ainda chove e ele anda na chuva caminhando pelo Parque, apontando pichações leminskianas não autorizadas pelos muros e comentando sobre qual é o lugar mais fácil ali perto de se arranjar maconha. Dessa vez, ele paga, já que nenhum dos amigos está por perto e o estoque pessoal acabou. “E se tu vem em Porto Alegre e não vai na Lancheria do Parque, então tu não veio em Porto Alegre, igual aquela história do Papa e Roma”. Deu passagem pra moça, puxou a cadeira pra que ela sentasse e comprou uma cerveja gaúcha. Nunca está frio demais pra uma cerveja, e era a bebida mais barata disponível – fora o que não tinha álcool. “Isso aqui”, ele diz, “era onde a nata intelectual se reunia nos anos setenta. Era o antro dos boêmios de Porto Alegre e convidados. Era o tempo que os universitários faziam faculdade por algo mais do que ‘uma carreira de sucesso’”. Universitários são uma raça extremamente irritante aos olhos dele, hoje em dia. Tanto que largou a faculdade de direito mal na metade. Pensou até em começar um curso de Letras, mas a indisposição não ajuda e ter que se sustentar sozinho também não. Mas ele nem se incomoda com isso. Por enquanto, as coisas estão funcionando bem assim, com essa ausência acadêmica. Observa a Lancheria, a rua, a Lancheria de novo.
Um homem de jaqueta de couro preta, integrante de uma banda local entra pra comprar chicletes e ele comenta com a moça que este é guitarrista de uma banda que é uma espécie de Legião Urbana dos gaúchos. TNT, o nome. Ri, porque reconhece no olhar de sua acompanhante que ela nunca ouvira falar. O pai do sujeito tinha morrido havia um tempo, tinha dado no jornal uns dias antes, mas foi morte de político e como Henrique odeia política, não prestou tanta atenção no que disseram. Não gosta de política por se saturar desde pequeno. Filho de militante, o velho Sergio Caveira, que se filiou a um partido de esquerda bem cedo, participou até da fundação dele. Depois, foi exilado no Uruguai por a organizar uns protestos que acabaram em pancadaria. Lá, diz ele, que entrou pra guerrilha, tomou um tiro no joelho, dormiu sabe-se lá quantos dias no mato até ficar bom da perna. Em 88, foi candidato a vereador em Porto Alegre com o Slogan "você que bebe, fuma e cheira, vote no Caveira." e charges comemorativas do Santiago e do Henfil pra ilustrar a campanha. Até hoje ele guarda um bule de chá com os desenhos estampados. Claro que não foi eleito, mas tomou um porre pra comemorar. Em 2000 e pouco, ele tentou ser vereador em Glorinha, cidade que ele mora há vinte e poucos anos no seu sítio. Não foi eleito, também. Mesmo que dessa vez o slogan fosse bonitinho.
Marcio Petracco termina de enfiar os chicletes recém comprados no bolso e vai embora sem ser reconhecido por mais ninguém. Pelo menos não manifestadamente. A chuva do lado de fora ainda escurece o céu e pinga pela cidade toda, escorrendo a sujeira dos telhados. Marcio saiu carregando blues nas costas, pintando tudo com acordes chorosos. Nesse cenário, eles também saem da Lancheria no mesmo passo e ele tira a gaita do bolso: é bom com improvisações. Melhor ainda quando bêbado. Improvisa e emenda um Bob Dylan por saber que a garota gosta. Ele é bom com a lábia de cretino. Melhor ainda quando bêbado.
A Igreja de Santa Teresinha, arquitetada no estilo Gótico que fica ali perto, subindo mais um pouco pelo parque, sempre pela Osvaldo Aranha, é uma atração a parte que ele faz questão de mostrar, mesmo que seja pouco familiarizado com os costumes católicos. “Aqui é bom de fotografar. Gente rezando parece que fica mais fotogênica, ainda mais com essas vela e esses santo tudo por aí”, ele tenta sussurrar pra não ser encarado pelas velhinhas carolas ajoelhadas ali nos bancos cobertos de veludo vermelho-forro-de-caixão durante missa. Não sendo bom entendedor da liturgia, acha engraçadas as mesmas velhinhas se dispondo numa fila por uma bolacha. Pega a câmera na mochila, regula os botões e vai andando. “Acho que não tem problema roubar alma de estátua, né?”, ri por ter falado alto demais. Dali para a primeira hora da noite, Porto Alegre se despediria de mais um visitante satisfeito e Henrique continuaria o caminho pelo Osvaldo Aranha de volta pra casa, tentando não ser assaltado e afastando as paranoias. Fica difícil prestar atenção demais em possíveis assaltos quando se está com a cabeça cheia de uma maconha recém-fumada escondida da polícia ainda antes de despachar a turista pro destino final.
Henrique não está resfriado. Não tem uísque caro na dispensa da quitinete, nem charutos ou cigarros importados na mesa de centro da sala. Mal tem uma dispensa no apartamentinho de 9x3m, cujas medidas são facilmente questionáveis, tendo em vista que foram tiradas por um grupo de amigos bêbados, em um dia qualquer onde ele conheceu a vizinha. Caminha pelos metros, tentando não tropeçar no gato, Rivelino. Está inquieto. Ler um bom poema sempre lhe inquieta as pernas. Uma boa frase, que seja. Meses atrás, a mãe – que havia rompido com o namorado - viera passar umas semanas com ele, enquanto arrumava um outro lugar pra morar. O apartamento diminuiu até ficar claustrofóbico e ele sentiu falta de ar até que ela fosse embora.
 Não tem mesmo uísque caro ou cigarros importados em nenhum canto da quitinete, mas luxo nunca foi uma falta que a vida permitiu sentir. Não que ele fizesse questão de senti-la, também. Um vinho de supermercado e o mini estoque de maconha adquirido naquela tarde davam conta do recado de um jeito mais prazeroso. “Luxo é uma puta duma coisa chata, já viu?”, ele comentaria mais tarde com a musa de alguns dos seus poemas. Essa é mais musa do que as outras, talvez por haver charme na profissão: trabalha numa bilheteria de Cinema. Ou, quem sabe, por ter sido internada algumas vezes em clínicas psiquiátricas espalhadas pela cidade. Termina de dar voltas pela casa, para em frente à janela pequena demais pra extensão do próprio olhar. A noite começa calma e ele está atrasado.
Antes de ir para o Cinema encontra-la, passa na livraria. Vai pelo caminho que corta o Parque, na cidade que já não chove tanto. Ele resmunga sozinho, andando com o mesmo passo observador de todos os dias e nota que talvez vá chover novamente mais tarde.
Idas à livraria são, necessariamente, um convite a surrupiar livros. Para ele é fácil e rápido, devido aos muitos anos de prática – em seu quarto minúsculo, há uma estante de resultados bem sucedidos. Lembra-se sempre de pegar uma edição de bolso, menos complicada de esconder. Dessa vez, procura um título de autor não tão maldito quanto os que está mais acostumado a ler – por questão de gosto e identificação. Segue o procedimento de sempre: vai prum canto escondido, tira o selo metálico da contracapa do livro e coloca na boca. Sai de cara limpa e com aprova do crime entre os dentes.
Henrique anda com Porto Alegre numa lata de cerveja comprada no final do caminho pro Cinema. E lá está ela: a musa. Poeta como é, não é tão poeta assim se for pra observar de um viés que morre de amor. Morre, sim, mas só até conseguir transar. Arranca uns dois poemas das demais moças com quem dorme (ou fantasia dormir) e parte para a próxima da fila como quem troca as músicas que de tanto ouvir, enjoam. Antes de pousar os olhos em definitivo na garota do caixa, olha as pernas de uma outra que sai de mãos dadas com o namorado.
Não tem um diálogo longo com a menina do caixa, só uns cumprimentos, uma exigência de devolução de livro emprestado e as esperadas reclamações sobre o atraso nas respostas e e-mail. Escritor compulsivo que é, tira da mochila os papéis e blocos de anotações pra esboçar qualquer coisa que não mostra pra ela, que se engraça pra cima dele. É uma musa nada platônica, desde que se conheceram, já que se conheceram com o único propósito de se esfregar. Mas a amizade foi pra frente. Ela paga um café pra ele, sempre que pode. Ele tem que voltar pra casa. Tem ensaio da banda e está atrasado. Decide pegar o ônibus ao invés de ir a pé pra casa do vocalista – onde ocorrem os ensaios. Uns meses atrás, ele tava olhando esse mesmo ônibus com um anúncio de concurso literário que, se você mora em Porto Alegre, tem a obrigação de saber que existe. Se inscreveu sem compromisso e ganhou espaço entre os demais poetas pra ter seus poemas publicados ali mesmo, pelos ônibus que todo mundo via.
A banda que começou numa dessas caminhadas pelo parque, quando cruzou, por acaso, com um cara que ele nunca tinha visto na vida que puxou assunto porque o bom e velho Henrique estava sentado tocando gaita. Foi convidado imediatamente com a banda ainda meio incompleta e quase toda capenga. Mas já que o lema é diversão, decidiu por ir mesmo, e ver no que que ia dar. Deu em briga por e-mail num xingamento sem fim entre os integrantes, mas a banda ainda ensaia. Chama-se Sanatório Paternon, nome esse adotado por conta da existência desse dito Sanatório no bairro do vocalista - mesmo lugar onde a musa já se internou – mas é mais conhecida como A Gaita e a Guita.
Sempre bebe mais do que ensaiam, mas sai um blues bom, quando é regado à álcool. Blues é o ritmo de Porto Alegre, blues é o ritmo do Henrique, que improvisa solos de guitarra com a maior cara de Keith Richards, que já chegou a matar em um dos escritos de gaveta.  Sai de madrugada pra voltar pra casa, sem carona e sem vontade de prestar atenção ao caminho de volta. Tá de madrugada e a hora é de ser poeta. “Nessas hora, eu queria era viver nos anos setenta, mas que se foda!”, ele grita pra os colegas da banda, descendo as escadas pra saída.
Desromantizando o poeta de máquina de escrever, ele senta na frente de um computador e abre as redes sociais todas. Bota uma água no fogo pra fazer um miojo, troca a areia do gato e reclama do barulho do cachorro da vizinha. “Porra, Rivis, esse cachorro filho da puta ainda vai levar um susto de vingança por ter tentado te comer o outro dia, escreve bem!”. Senta de novo na frente do computador, com uma seda velha e úmida pra tentar enrolar o último baseado do dia. Demora, porque seda úmida fica mais difícil de manusear. Anda até a janela ainda dando babujadas no baseado pra fechar tudo direito e se apóia na janela. A noite não tem lua e o apartamento parece sumir nas costas dele com o céu na frente dos olhos. Ele desce o olhar pra janela da vizinha, porque gosta de saber com quem e como ela anda transando – pra colher material literário.  Passa uns segundos de melancolia até terminar cigarro caseiro e anda pelo apartamento até uma frase genial ocorrer. Havia lido que Hemmingway escrevia de pé e tentou a experiência sem sucesso: precisava sentar. Mas tinha boas idéias de pé e assim ficou até elas aparecerem. Se a primeira frase não surgisse, ele recorreria às anotações de rua e se ainda assim não sentisse o tesão literário que costuma o arrebatar com frequência, apelava pra alguma das musas, sendo quase sempre a principal escolhida, a moça do Cinema.
Na frente do computador, com o vinho barato do lado ele não precisa de muita coisa. Só se o vinho acabar, claro. Aí ele vai imediatamente vai imediatamente buscar mais e se não tiver, vai dormir.
“Eu sou contra cocaína, rapaz, mas se me oferecerem eu não resisto, não. Podem contar aqui nos dedos as vezes que eu cheirei, também. Foda-se, eu nem devo satisfação pra ninguém, ué. Aquela ali, ó, de um e noventa? Pois é, eu com um e setenta e pouco quase comi, mas era fresca demais.”, ele ria numa roda de poucos amigos, no outro dia, numa madrugada boêmia não planejada. Ria com vontade mesmo, contando que a sexta-feira chega junto com a filha e se lamentando por querer uma musa que possa apresentar pra família, pro tio que fazia as capas dos livros do Leminski. Reclama porque tá mais bêbado do que os outros dias da semana. Pega um bloco de anotações na mochila e pede uma caneta emprestada do garçom. O que tá escrito, ele não mostra. “Aposto que amanhã eu não entendo minha letra”.

Wednesday 14 August 2013

Nublagens

A lua cheia
é a boca aberta
da noite
a engolir os poetas

Friday 7 June 2013

Día Cimí

inside those eyes
the cloudy skies
whose salty rains
begins to cry

and as it falls
from face to grass
the air escapes
within a gasp

and no wind can blow away
these heavy scars that here remain
that only floods could drown and lay
slowly filling up the pain

and there's a body facing death
with no life in its breath
and a placid closed voice
that does not make any noise
but the sound of not to be
there's no longer man nor he

just a this box made of wood
carrying a corpse in a suit

outside there, suffering and sorrow
no more hope, and no tomorrow

but inside it, there is peace
and some rest for soul, at least

there is no storm
and there's no thunder
when you're buried
six feet under

Sunday 5 May 2013

Like tears in rain


Cores caíam do céu como Lovecraft previra. Cores que não tinham nome nem lugar nas escalas comuns aos olhos humanos, exatamente como ele disse. Acredito que tenham perdido a habilidade de Adão de dar nome as coisas, porque não dava pra pensar em nenhum para elas, nem mesmo encaixá-las entre as já existentes. Se o fizessem, provavelmente não haveria mais luz branca.
Elas desciam do céu normalmente à noite. A primeira caiu na Rússia, sumiu depressa. A maior parte das pessoas nem ficou sabendo direito o que aconteceu além é claro da queda do Meteoro que levantou especulações sobre a volta de Jesus e a vinda de um bebê alienígena que usaria uniforme e salvaria o mundo e que por algum motivo escolheria trabalhar como jornalista (profissão que eu abandonei antes mesmo de exercer).
O caso é que nada disso aconteceu. E foi como Lovecraft havia dito e foi o começo do fim, exatamente a frase mais apocalíptica que eu posso pensar pra falar do que meus olhos vêem. As cores do céu eram estudadas com os métodos séculovinteumnescos antes de sumir por completo e tinham propriedades físicas e químicas que eu não sei discorrer sobre. E elas levaram embora as cores da terra, as que tinham nome. Sobrou apenas o cinza, que é algo em cima do muro entre o completo e o vazio. A Terra secou em cinza e tudo o que resta de vivo são os galhos que a noite, conversam com um barulho retorcido que eu nunca procurei prestar atenção.
A idéia de futuro apocalíptico que eu tinha era menos monótona. Mas tudo pareceu se acostumar à escassez. Tudo é morto e opaco e se arrasta. Nem sangue brilha mais e não há andróides, não há replicantes pra eu notar brilho nos olhos de alguma coisa. Se houvessem, eu os deixaria fugir.
Também não há a adrenalina de um apocalipse zumbi, embora antes do primeiro fim, as pessoas só comessem e cagassem e andassem por aí com as camisas sujas de restos de desatenção ao se alimentar.
De alguma forma, isso me lembra o passado.
Ao menos faz calor. Assim dá pra enxergar melhor. No frio tudo fica mais escuro, também. E o problema não é a presença ou ausência de Sol, mas a neblina daqueles dias nublados que fazem duas da tarde parecerem sete da noite. Isso se ainda se contassem as horas. Ou os dias. Eu, ao menos, não compro calendários há anos.
Eu não sinto fome e faz calor. Isso é bom.
Ainda assim ele procura alguma coisa pra gente. Ele tem isso: precisa procurar o tempo todo, incessantemente. Mesmo que eu não precise de nada, mesmo que não tenha ninguém por perto, mesmo que esteja tudo tão cinza e plano que qualquer coisa mínima que destoasse seria notada a quilômetros. Ele precisava procurar pra não ficar louco. E se não achasse, olhava pra mim. E talvez achasse algo, porque ele respirava daquele jeito que pouca gente hoje em dia respira - pra evitar acabar de vez com os pulmões - fundo a ponto de encher visivelmente a caixa torácica e depois soltava o ar. Tossia, limpava a boca na manga da camisa e voltava a procurar.
Era cego. Sim, tinha olhos meio-vazios, exatamente assim. As pupilas castanhas eram castanhas só até a metade. O resto era esbranquiçado, opaco e tinha uma aparência de recipiente. Eu deduzi que alguém havia retirado metade da cor de café que tinha ali.
Os meus já há muito que são vazios, ou quase (sobra no fim da xícara sempre aquele restinho de qualquer coisa que ninguém consegue beber e eu espero que não evapore).
O ar está úmido demais e essa coisa onde estou sentada não é lá muito confortável. Ele ali parado de costas pra mim, procura. Começo a suar e sei que mais tarde o suor vai querer me abandonar, escorrendo pelas têmporas. Nada permanece, não é mesmo?
Eu quase acredito nisso, mas só até meus olhos encontrarem ele de novo, procurando. Parece que ele é a única coisa que ainda vai estar ali. O tempo todo ou até quando eu decidir olhar de novo.
O vento não faz mais barulho e o chão absorve o som, deixando tudo num silêncio insuportável, aqueles silêncios que antecedem algum susto, que grudam de um jeito pegajoso nos tímpanos. Não ouço nem a minha própria respiração, nem a dele e meus pensamentos também emudecem. Sempre sinto um sufocamento instantâneo nesses minutos diários que antecedem a noite.
 O tempo pesa arrastando pra baixo, pra um outro lado, o que restava de dia e de suposta luz natural, pra dar lugar aquela iluminação de satélite que eu sempre achei triste: algo que não tem luz própria, um espelho gigante e imperfeito. Os postes leitosos se acendem. Se cemitérios ainda existissem, eles seriam quase assim, eu tenho absoluta certeza. Quem sabe até com um cheiro um pouco mais agradável ou apenas o de morte (o que já seria um alívio).
Talvez o mundo acabe mesmo, as baratas já não passam mais nas ruas e de cima aquelas carcaças de condução de eletricidade observam a gente como se fossemos os substitutos menos resistentes dos tais insetos, mas não se movem pra nos matar, não gritam de medo. Apenas nos ignoram, enferrujam e esquecem de conduzir a eletricidade.
Contrair um pouco os dedos das mãos já é o suficiente pra que eles estalem. Movo as mãos para uma posição qualquer de dança, daquelas que ficam gravadas na nossa cabeça pra sempre, desde as primeiras aulas de balé e o caminho dos meus braços é musicado pelo barulho seco dos meus ossos quebrando sem doer ou doendo sem quebrar. Não sei mais a diferença.  Os gigantes enferrujados viram os olhos pra mim e o suor na minha nuca seca ou eu só paro de senti-lo escorregar, com medo. Ele percebe. Percebe que eu quebrei o silêncio de propósito porque quero ir embora e que eu não tinha esquecido de conduzir eletricidade. Quero sair de cima desse resto de metal sem ter que me mexer com cuidado pra não me cortar. A morte cansou dessa gente toda e se machucar significa ter que apodrecer e ainda assim continuar andando. Ele percebe isso também.
Aqui eu penso que algo deveria acontecer, que a monotonia vai dar lugar às explosões ou a qualquer outra dinâmica que não seja a tarefa de respirar, mas a quase-alteração no meu batimento cardíaco se frustra quando uma outra onda de silêncio passa e cala todos os pedaços de mudança no cenário. Tudo fica quieto e eu não quero mais me mexer. Ele não pode me carregar nas costas para sair dali, nem nos braços. Ele não pode nada além de procurar e eu sei disso, sinto a pressão nos ombros dele pesando e forçando-o a suportar o peso da terra nos ombros, mesmo não sendo o substituto de Atlas, que há muito deixara a abóbada celeste desabar pelo espaço.
Talvez tenhamos vindo parar numa espécie de Tártaro sem nos darmos conta. Despencando e despencando e desquarando, perdendo as cores que voltavam pra onde deveríamos estar. Talvez seja só a gravidade brincando de fazer a gente achar que os meteoros caíram na gente, quando na verdade nós é que batemos em pedaços do espaço que não nos pertenciam.  E fomos nos chocando repetidamente até que voassem pra longe todas as folhas, todos os verdes e os tons de sangue.
Não resta aqui cruz vermelha e nem há famílias de sangue azul (as últimas famílias reais notaram isso tarde demais, quando o que lhes escorria do pescoço era tão vermelho quanto ainda permitiam aqueles anos). Não há mais socorro nem hierarquia e por um segundo eu consigo sentir a queda livre do universo em direção a mais ausência das cores que ainda sobram. Elas não tem nome.
Sinto falta de andar descalça. Essas botas me incomodam.
Quanto tempo antes do último choque será que eu consigo ficar sem piscar? Os olhos lacrimejam, não é? Quando eles fazem isso, fica difícil não fechá-los pra desocupar as órbitas, pra que elas não se afoguem e pra que não fiquemos mais cegos ainda. Deveria sentir a queda, sentir frio na barriga, mas não sei mais como fazer isso. E tem essas botas. Qualquer possível conforto que eu pudesse sentir é imediatamente cortado pela aflição que me dá andar com essas coisas malditas me tapando os pés.
Queria esticar as asas, mas sem cor elas não funcionam e não consigo voar. Além do mais, se meus braços fazem barulho ao se mexer de forma menos mecânica que o ato de andar ou balançarem-se como dois mortos ladeando meu corpo enquanto eu caminho, imagino o barulho que elas iriam provocar? Chega de atrair olhares por hoje, chega de querer pensar que a mudança no som traria alguma diferença no que se estende diante da gente. Não há mais nenhum pigmento no ar.
Levanto e ando como dá, não me escuto emitir som nenhum. Não suspiro, isso machuca, apesar deu sentir vontade.
- Fadas não deveriam usar botas. – Ele diz. Demoro um tempo pra decodificar as ondas, a voz, pra lembrar que as pessoas faziam isso. Que elas falam mesmo. Acho que eu deveria sorrir, não é? – É... talvez aqui vocês devam. – Ele toma mais um monte de ar pros próprios pulmões e não tosse.
Procuro a minha voz nas minhas cordas vocais empoeiradas. Não reconheço mais meu jeito de falar, mas digo a ele que sim, que fadas usam botas ali porque o ar é pesado demais pra voar e os nossos pés são frágeis demais pra serem consumidos por esse chão de nada. Acredito que eu afundaria se tentasse.
Ele não tem asas e continua procurando. Tomara que não demore muito. O meu limite de séculos está acabando e eu sei que estamos caindo. Sem parar. E eu preciso levar o que sobra desse lugar pra longe daqui. Só resta ele e mesmo que ele procure, ele sabe.
Seus olhos vazios me encaram. E eu os dele. Existia uma brincadeira ancestral onde não era permitido rir ou piscar – nesse mesmo tempo ancestral, humanos sorriam se olhassem uns para os outros, por isso a brincadeira parecia difícil.
Tudo se concentra.
Continuamos em queda livre.
A luz escassa apaga.
- Ei, você piscou.

Monday 29 April 2013

Poema improvisado sobre desafortunados

tem sempre mais um tropeço
pra atrapalhar o progresso
uma hora tu perde emprego
quebra o pé, bota gesso
e a gordura escorre do teto
(males de morar em apartamento)

e quando tu pensa que acabou o tormento
um cachorro ataca teu gato
e tu perde o par do sapato
do pé que ainda tá bom

pede emprestada a caneta do garçom
porque ainda te sobra poema
e uma lingua diaba, blasfema
onde te falta sorte
(vê se não espera o céu, em caso de morte).

Thursday 18 April 2013

Ultrapassadismo


Segundo o dicionário
o poeta é um sujeito
sonhador e visionário
e digo ainda que não era lá
muito amigo do vigário
por ter hábitos
pouco católicos.

Com o seu verbo rasgado
o Sujeito anda roto
pelo verso, amolambado
desmaia na marginal
e sonha com um soldado
pensando
em fazer
sentido.

desiste logo da idéia
- disciplina dá muito trabalho
e vai namorar a plebéia
e escrever a princesa
que é da manhã, o orvalho
[mas só até abrir
as pernas]

Não se esquece de ir beber
já que poeta tem que manter
a boa e velha boemia
vida sem regra, feito a poesia
pelo menos
em teoria

Em teoria, na prática,
é documentação do poeta
ditando em função fática
os roncos
das olheiras
e cavado
nas cadeiras do Bar Savoy
pede um chopp
com capacidade
pra trinta
[já que da caneta
acabou a tinta]

E chega no fim do dia
que pra ele é trocado
- a noite é o dia disfarçado
se entrega a eufonia
dos roncos no travesseiro
pra dormir o sono dos justos
e sonhar que fez o que queria
que viveu a dita boemia
e abriu as pernas da princesa
[ao invés de ir trabalhar
e jogar os poemas
na gaveta]

Thursday 11 April 2013

Anacronismo em pretérito


morri
um mês antes do planejado
fui habilmente cortado
pra fora da minha mãe
punição que sofri
por querer ficar sentado
e não virar a cabeça pra baixo
como faz o resto do mundo

sorri
pra foto três por quatro
e aprendi a fazer teatro
pra esconder o choro
escalei infernos
edifícios vestindo ternos
[adjetivo que não cabe]

subi
pelas escadas de emergência
tentei manter a aparência
e não parecer cansado
enquanto os meus pulmões
imploravam por paciência
[respirando com pressa asmática]

ali
naquela quase esquina
o dia fechou a cortina
antes do dia ir dormir

senti
o cheiro de ferro vermelho
meu peso em cima dos joelhos
e o cimento quente na cara
e no fim a dor se encerra
aqui, debaixo da terra
nasci

Tuesday 9 April 2013

Anúncio do tempo nublado


escorrem os telhados
em pingos de céu
pelas calhas
pelos azulejos de prédios
e pela ausência de guarda-chuva

e acumula-se
no mofo
na gripe que chega depois de mim em casa
e no medo de faltar luz

no fim, tudo se afoga
[grande problema dos bueiros entupidos]

Pingo

a chuva
inunda
a rua
imunda

Wednesday 3 April 2013

Hematoma

Escrito com Lucas Moraes.

aqui dentro
murros nas paredes fazem
mais barulho que beijos
mesmo os estalados
e são roubados
pelo eco
do que não foi dito
mas ainda assim
dói

queria ouvir gritos
e sentir os afagos
mas só me sussuram o gosto amargo
que eu temo quase sempre
e guardo na mente
mesmo quando não me lembro do som que faz
ainda, sim
dói

nunca ouço meus desejos
só os meu medos
e o desespero
lambe os lábios
sorrindo
e puxa a minha boca
pra baixo
e agora, quem grita mais alto?
assim
dói.

Tuesday 19 March 2013

Desatenção

a vida tem essas de desviar
como quando se dá
três passos
corridos
pra escapar da poça d'água
que os carros projetam em direção aos pedestres
[a maior parte deles
ainda carrega as mãos nos bolsos]

e tem umas de passar rápido demais
e xingar quem estiver no caminho
[mesmo que o sinal carregue vermelhos
ou tenha gente pedindo passagem]

e engarrafa-se toda
mas agora só na minha cabeça
porque não passam tantos carros assim na rua
de madrugada
por isso eu não entendo o meu medo

eu atravesso sem prestar atenção
com o frio na barriga de quem tá fora da faixa
mas não faz muita diferença
pra quem carrega a morte amarrada nos pulsos

Sunday 10 March 2013

Nihil novi

falta substância
ou som
pra reverberar no oco
mas nem o bater dos cílios
que trocam confidências
do andar de cima com o de baixo
conseguem me fazer escutar cochichos

nem um pingo
que me remete à sons de tortura

nada

nem piscina
nem mar
nem água salobra da torneira

e nada
que se verbear
bate os braços

mas não adianta nada
debarter-se em sombra

Tuesday 5 March 2013

Agulha e linha

Eu havia descosturado as vogais do nome pra ver se conseguia pronunciar-se sem elas. Sem sucesso. As vogais eram bonitas e tinha lido em algum livro que se colocassem uma arma na minha boca, só conseguiria pronunciar vogais. Então, pra não correr o risco de não conseguir me apresentar nessas circunstâncias, costurei-as de volta.
Hoje não me sinto confortável vestida com um nome só e decidi por um nome composto e verde bem forte. Também não queria ser nem Maria, nem Clara, nomes santos demais- a não ser que o primeiro viesse acompanhado de Madalena, bem comprido e chamativo, ou apertado como um espartilho e o segundo... não tem como usar sem parecer inocente. Além do mais, estava bronzeada. Não sei nem porque estou pensando sobre vestir nomes compostos, o meu já está de bom tamanho, doze letras que meu avô escolhera bem e dissera que, com um ene a menos, a numerologia ia fazer a qualidade do tecido diminuir. Tinha que ser Anna, com dois enes. E agora, pra mim, toda Ana com um ene só parece menos Anna, apesar de ler-se igualzinha, de trás pra frente.
Palíndromo também poderia ser um nome próprio, mas eu nunca colocaria nos meus filhos.
Gosto de Carolina, Carolina me lembra o meu cabelo cacheado encaracarolinando entre os dedos todos os dias, por causa da minha mania nervosa de mexer nas pontas do cabelo pra lembrar que ele tá ali e que nunca mais eu devo cortá-lo curto. Gosto mais ainda de Carol, apesar de ser mais curto, mas não é desconfortável. Carol rima com palavras engraçadas.
Anna Carolina devia ser a minha roupa favorita, se não estivesse tão desgastada. Não é toda camisa de banda que dura vinte anos sem desbotar, não é? Imagina então uma Anna Carolina que é feita de um pano que tem que lavar a mão pra não rasgar? Sempre tive preguiça e máquina de lavar sempre foi mais fácil. Além do mais, estava em liquidação na época que eu nasci. Nunca, em toda a minha vida escolar, eu fui a única menina que se vestia assim.
O lado bom, é que um monte de músicos fez vestidos e camisas e calças jeans - rasgadas ou não -  com o mesmo material ortográfico de costura e poxa vida, dava gosto de usá-las como adereços de vez em quando. De Jorge Ben á Beatles e passando por versões diferentes de mim, sendo uma guria que nem desastrada é, ou uma que carrega labirintos nos lábios. A mesma coisa, confeccionada por vozes diferentes, nunca fica igual. Tudo tecido em corda de violão. Disso eu gostava. Num dava pra pré fabricar, nem pra ser uma coisa só. Acho que só por isso eu aprendi a sambar - ou fingi que prendi.
E eu não sei onde que começou isso tudo. Acho que foi porque, no espelho, eu não consegui me encarar vestida de Maria Cecília, nem de Tarsila e nem de Raio de Luar (ai, mamãe, que roupa mais esquisita que você ia me colocar ao nascer. Ainda bem que o vovô interveio). Mas nada tem começo, tudo é um amarrado de um pedaço de coisa no outro, então eu não preciso me preocupar com isso. O mundo é todo remendado.
Eu nasci nua em dois sentidos e onze horas da manhã. Quatro da tarde, meu pai dizia que queria me vestir de Anna, fosse como fosse. Minha mãe ainda insistia nas vestes ripongas. Ninguém decidia nada e meu avô saiu pra andar na rua com meu pai e acharam grudado num outdoor o complemento pra roupa: Carolina.
Ninguém lembrou que minha mãe havia prometido, na infância, que vestiria a  primeira filha com o nome da irmã mais nova: eu deveria ter usado Verônica desde o dia do meu nascimento, mas aí não seria eu, com meu gênio calmo demais. Não ia ficar bem no meu corpo, não. Tia Verônica ficou até meio brava, mas uns anos depois a minha irmã ia chegar pra acabar com as pendências. Verônica cai muito bem nela. Inclusive, ela odeia que a cutuquem, porque pode amassar ou desfazer alguma parte dos bordados.
Já pensei em usar Alice, só pra ter a honra de por uma coisa feita pelo Leminski, imaginava uma saia rodada Alice bem vermelha, talvez rosa que Ali se visse que nem ele diz e aí talvez eu fosse menos míope, mas não dá. Se for Alice tem que vir um país inteiro junto e eu com certeza ia me afogar de chorar mais do que só um mar de lágriminhas de gigante. Ou Lúcia, pra dizer que não gosto de Lúcia e prefiro Maga, que é mais acinturado. E quem sabe até Tereza, mas só porque eu gosto de Kundera. É, esquece o Tereza, porque é cinza demais e de cinza já basta o gosto que tá na minha boca. Não se deve escolher uma toupa só pelo estilista, né? Acho bobagem.
Acho que no fim nem importa muito como eu me visto, porque eu sempre perco o fio da meada e começo a descosturar.

Friday 22 February 2013

Nota sobre o autor

Eu meio que não sei o que escrever aqui. Não sou boa em colocar as botas de primeira pessoa pra ser o meu próprio eu-lírico. Acho que por isso que me coloco em pedaços de tudo o que escrevo. Acho que isso tudo sou eu, em linhas.
Sou do tipo que sente. Sente muito - talvez em todos os sentidos da expressão.
É pra ser uma biografia, certo? Tá, eu nasci (em São Luís) longe daqui de onde moro e talvez por isso eu não goste muito de Brasília (imagina só como é ter o mar diante dos olhos quando a gente nasce e tirarem ele de você pra você ter que carregar esse cerrado nas retinas? - fechadas ou abertas). Enfim, vim pra cá não muito pequena, mas ainda era criança e sempre fui meio tímida, então foi complicado pra mim. Estudei boa parte da vida em escola Católica, já briguei com meu professor de filosofia. Também estudei numa escola evangélica e foi um saco.
Não tenho paciência pra religião nem pra política e odeio a reforma ortográfica.
Quero ir embora de Brasília o quanto antes e futuro é uma coisa que me apavora.
Tenho medo de aranhas. Mas assim, medo mesmo.
Gosto de colocar post-it nas coisas dos meus amigos, gosto de repetir falas de filmes, tenho uma puta dificuldade em decorar nomes de personagens de primeira e queria escrever que nem o Júlio Cortázar. O Batman é uma das únicas coisas que eu elegi como favorita, porque eu odeio escolher coisas favoritas, mas não tem como quando se trata de super-heróis.
Sou frustrada porque eu sempre quis fazer artes marciais, mas na época que ia entrar, torceram meu pé e eu além de não poder entrar no kung fu, tive que parar de dançar - que era algo que eu fazia já há oito anos. E também porque eu sempre quis ser o Shiryu nas brincadeiras de Cavaleiros do Zodíaco, mas não deixavam porque ele era homem, e aí eu tinha que ser o Shun (porque apesar de ser homem ele tinha armadura rosa).
Observo a vida às vezes dividida e esparramada em ângulos desconhecidos até por mim e não consigo entender muito bem o protocolo social.
Acho que tenho 20 anos e acho que tenho 1,72 de altura (não gosto de ser alta). Não ponho pilha nos relógios que tem no meu quarto, mas acho-os lindos (um deles é de Watchmen e o outro feito com disco de vinil). Faço aniversário dia 23 de outubro e tenho um Frankenstein de pelúcia.
Creio que não falei nada relevante.
Ah, minha primeira palavra foi "árvore". E se eu tivesse um superpoder, seria telecinese.

Improviso

segura a rima
antes que ela pule
de cima
do muro

suicídio poético
é ponta de lápis quebrado
e tédio.

Thursday 7 February 2013

Círculos Cromáticos


Meus post-its estão acabando de novo, mas eu não irei acordá-lo pra irmos comprar mais porque sei que ele demorou a pegar no sono. Ele sempre demora demais pra dormir quando os olhos ficam opacos, quase como se o lado de dentro tivesse apagado a luz e alguma parte dele tivesse medo do escuro. Dói em mim quando isso acontece porque moram pulsares no fundo dos olhos escuros e quando eu não consigo vê-los, a companhia elétrica corta a luz dentro de umas partes de mim. Muita coisa na gente era assim, aliás. Como um conjunto de peças, como uma caixinha de música e se algo para, a música sai errado ou a bailarina não dança. É assim: se fica escuro pra ele, falta luz em mim também. Nós dois sempre fomos meio quebrados, mas, como ele dizia, eu era o motor e ele as engrenagens e desse jeito as coisas ficavam menos tortas e tudo parecia funcionar de um jeito simples demais pra explicar pros outros.
Sempre que acordo no meio da madrugada, é pra escrever bilhetinhos pra ele não esquecer de ligar o interruptor e o projetor super 8 que carrega por trás dos olhos por trás dos óculos, mas como minhas notinhas estão acabando, vou ter que escrever nele ou em mim, pra ele lembrar. Ou então no espelho, com algum batom (se bem que o único batom que tem em casa é o que a gente usa pra fazer maquiagens de Crimson Ghost ou de Eric Draven e eu não queria estragar). Ou posso esperá-lo acordar... Mas não vou aguentar, então eu escrevo os poucos bilhetinhos que faltam, falando do café da manhã e também da minha indisposição com o laranja naquela dia - que eu espero que mude a tarde pra conseguir terminar de pintar alguma coisa que eu ainda não comecei - e caminho de volta pro quarto tentando não derrubar nada pra não acordar os cachorros. O Ernesto, nosso gato, sempre sabe quando eu acordo e me acena com a cauda um pouquinho antes d'eu chegar onde quero. Fecho a porta do quarto devagar e tomo cuidado pra não pisar em nenhum dos sorrisos espalhados pelo chão.
Ele carrega constelações inteiras nos pulmões e enquanto respira, consigo imaginá-las todas. As minhas, carrego nas pontas dos dedos e sei que não fazem cócegas nele, a não ser quando elas decidem morar nos meus lábios. Ele dorme meio encolhido, acho que doeu depois que eu saí, mas não acordou. E mesmo que tenha se encolhido, ainda tem o meu lugar ali na cama, ali, tão simetricamente ajustado ao lugar dele e eu sei exatamente como deitar. Meus esforços para fazê-lo sem provocar um semi-despertar dele são inúteis, mas não me alarmo - ele não vai acordar, só quase. É só pra gente se ajeitar de novo, mesmo que não precise. O nariz dele encosta no meu pescoço e eu arrepio uma vez e de novo quando suas mãos passam pela minha cintura pra me abraçar. Ele se esconde em mim e eu nele e o mundo funciona todo como deveria. Torto, como nós dois e nosso como a gente.
De vez em quando, quando ele acorda sozinho, se machuca de dentro pra fora, talvez porque quando a luz apaga dentro dos olhos, ele saia esbarrando em si mesmo e isso faz o ar faltar e o suor correr frio do lado de fora. Meu coração sempre samba errado quando isso acontece e eu tiro a camisa - normalmente uma das que são dele - e encosto a barriga e os seios em suas costas, pra arrumar os nossos ritmos. Devagar, as coisas respiram de novo e ele se acalma. Dessa vez, me pergunta se eu havia conseguido mexer nos meus pincéis e eu digo que o laranja estava de mal comigo, ou o contrário e que eu tinha escutado uma música mais cedo que falava sobre o Van Gogh. Perguntei a ele se sabia se o Vincent gostava de laranja. Ele diz que devia gostar e que eu devia experimentar torta de abóboras. Eu digo que sei fazer e que faria uma pra ele, mais gostosa do que todas as que ele havia comido (eu teria que arrumar alguma receita na internet, uma hora dessas).
É. Talvez laranja não fosse tão ruim. Talvez eu desenhasse algo mais tarde, mas me aborrecia a idéia de levantar da cama justo quando as pontas dos meus dedos desenham alguma coisa nas costas das mãos dele. Gosto de quando a gente pinta os segredos com letras que ninguém lê nas costas das mãos. Ninguém além de mim, depois que sorrio com os lábios dele. E ele tem mãos bonitas e um bocado maiores que as minhas, que parecem de criança. Cheias de calos, as mãos dele tocam tudo de um jeito diferente e eu gosto de tê-las para mim. De andar de mãos tão dadas que elas se derretem uma na outra. Acho que foi por isso que o Ernesto escolheu a gente pra ser o casal adotivo dele. Sim, porque o Ernesto é o gato mais cinza de nome mais cinza ainda que se tem notícia e ele não aceitaria ser adotado, então adotou a nós dois, porque gostava do jeito que meus anéis e os calos nas mãos dele pareciam se completar por entre os encaixes dos nossos dedos. O Ernesto tem um lado meloso.
Gosto de misturar temperos quando eu cozinho, mas não lembro nunca os nomes deles direito. Lembro mais pelo cheiro, o que fica bom com o que. Misturar cheiros é bom, também e às vezes mais fácil que misturar cores. Eu gosto de mesclar o cheiro dele no meu pra gente ficar impresso nos travesseiros, ou, quando ele tem medo, pincelar beijos de leve pelo seu corpo, com tinta feita de uma mistura só minha de saliva e sussurro, pra criar incensos que o acalmam. É uma alquimia, mas é segredo nosso. Tenho uma maletinha de incensos na cabeça, todos bem anotados, outros nem tanto, mas aí eu improviso ingredientes. 
Talvez amanhã eu acorde gostando de laranja, porque em um certo ponto, um bem certinho pendurado no relógio que não existe, o vermelho e o amarelo se escondem tão bem um no outro que o laranja aparece feito um cobertor pra esconder a fuga das duas outras cores. Talvez eu goste de laranja agora, porque me lembra a gente e porque eu vou fazer torta de abóbora pro almoço.
Seus olhos agora parecem tão acesos que só consigo sorrir com todas as estrelas que tenho pra ele e pro laranja-torta-de-abóbora em sua boca. É bom vê-lo respirar calmo, tão mais ameno do que quando se afoga. Eu tenho falta de ar de vez quando, a sensação de mergulhar é estranha. Uma vez, lendo o Jogo da Amarelinha pela milésima vez, eu sorri dos rios metafísicos que o Cortázar colocava ali, pro Oliveira se afogar. Afogamentos. É como se nós nos salvássemos constantemente de afogamentos, estando mergulhados um no outro. Marquei essa passagem duas vezes e sorri porque eu às vezes me via na Maga. A Maga era meio cheia de ângulos demais. Mas eu gosto disso. E gosto de rios metafísicos. Acho que eu conseguiria mergulhar neles sem ficar com falta de ar e até mergulhar mais fundo que ele. Ou então, ele me deixaria ganhar, porque no fim, não fazia muita diferença. Mergulhar em si mesmo era mais apavorante sozinho e eu achava engraçado competir, não que eu fosse boa naquilo. Há sempre um ponto em que a gente se perde no mergulho, mas alguma hora tudo torna a fazer sentido e outra hora a gente emerge - eu não sei explicar essas coisas, também. E voltamos bem na hora em que o vermelho e o amarelo se juntam numa linha meio de aquarela borrada de azuis e de lábios. Tudo fica laranja e Monet reclama que a gente está trocando beijos bem na frente do que ele quer pintar.
De vez em quando ele funcionava com extremos, porque gostava de mergulhar, mas ficava horas olhando o fogo, como se uma hora fosse confundí-lo com a água e fosse tentar praticar apnéia em línguas inflamadas. Ir fundo no fogo, será que tinha como? Pergunta boba.
Digo a ele que um amigo meu, que é poeta, diz que as cores são roupas da luz e que se eu me importasse com roupas, invejaria a luz por conseguir se vestir tão bem. O sorriso pós-torta-de-abóbora dele me dá ainda mais certeza de que eu gosto de laranja hoje. Me diz que ainda bem que eu não me importo com roupas, porque eu fico mais bonita nas dele, de todo jeito.
Não dá vontade de sair dos nossos anacronismos mas essa é a hora d'eu ir me encontrar com pessoas de açúcar - que não pegam chuva pra tinta não escorrer e borrar a maquiagem - que me cansam - e implorar pro Dalí ou o Escher me tirarem do tempo. 
Mas é bem rápido, digo a ele com vontade de deixar o corpo em casa, junto com o resto que nem sai de lá. Nunca é bem rápido, mas a gente tenta se convencer.
Droga, engarrafamento. Cadê a minha bombinha pra asma?
Ele vai ter falta de ar. E meus pulmões já doem. E fica tudo escuro em mim e agora tem os braços dele apertando o que resta dos meus pedaços pra eu não sumir e tudo o que eu consigo dizer antes de dormir são uns pedidos pra que ele não vá embora. "Mas eu moro aqui", ele diz e eu consigo respirar. Mesmo que eu fizesse tudo errado, mesmo que eu ficasse mais quebrada do que ele, eu ainda ia conseguir respirar todas as vezes que ele me beijava os olhos. Laranja agora, queima e não é um calor suave, calor de dois corpos juntos ou um calor de cidade litorânea. É um calor distante dessa cidade seca. 
Laranja com gosto de cinza, descendo pela garganta com força, empurrando as paredes do esôfago e fazendo sangrar. 

Desfaço o devaneio rápido - eu sempre tive esse mal de ser meio distraída. Tinham umas placas na rua e vento fazendo barulho nos ouvidos. Uma mãozinha estende um giz de cera laranja me dizendo alguma coisinha com os olhos. Quer uma história e um desenho. Quer saber uma cor favorita. Outro desenho. Não, hoje não é laranja.

Tuesday 5 February 2013

Doze


Escrevo mentalmente, imaginando as coisas mais como desenhos do que como linhas escritas. De qualquer forma, não uso caderno com pauta. Meu traço nunca foi muito preciso, gosto de dar impressões não-fiéis pra que as pessoas liguem pontos, imaginem o quiserem da falta de exatidão. Escrevo mentalmente desfazendo a ideia de desenhar por pura preguiça, porque digitar é mais fácil e meu ânimo é pouco. Termino de redigir o primeiro parágrafo e paro pra fazer desenhos no box embaçado. Escorri pela parede até sentar no chão há uns quinze minutos atrás, quando liguei o chuveiro quente no mais quente possível. Esqueço o primeiro parágrafo, aperto as têmporas pra sair alguma idéia que seja. Sinto desfazer entre os meus dedos, pensamentos que eu não queria ter deixado escapar. Droga, devo ter apertado a cabeça com muita força já que agora, me escorre dos olhos também o que eu não queria deixar escapar. Mas a água quente leva embora o gosto salgado antes que eu possa sentir de verdade, embora eu consiga definir bem o que toca meu rosto. Decido sair só depois que meus dedos enruguem. Aí, os espelhos todos já estariam suficientemente vestidos de vapor e eu poderia me livrar de olhar pra dentro e voltar pro quarto sem maiores perturbações.
Tudo aqui funciona numa ordem-sem-ordem onde, na verdade, eu poderia muito bem estar deitada no teto e onde as paredes mudas pedem pra ser lidas. E o tempo que se instalara ali, fingindo não querer nada, pesando a ponto de parecer parafusado à superfície que o sustenta.
O fato de não poder mudá-lo de lugar sempre me irritou muito. Ele fica ali, parado na minha prateleira, sem me dar espaço pra guardar mais livros, - me obrigando a comprar mais prateleiras - girando num círculo interior tão constante e preciso que me dá náusea existencial.
Penso em mais um parágrafo e anoto palavras-chave. Papel sem pauta. O tempo corre sozinho sem sair do lugar que me incomoda. Além do mais, ele nunca se basta, embora sempre se canse e prefira sempre um tempo além dele mesmo. E, ah, como reclama! Reclama do clima que está mais quente ou mais frio, ou mais seco ou mais úmido e que a cidade ainda é nova demais. Reclama que não se fazem mais histórias como antigamente.
Pra mim, sempre foi pior do que saber que não se fazem mais histórias como antigamente, saber que não se escrevem histórias do agora, como agora. Há um pudor pelo hoje que eu não consigo entender, como se tivéssemos que vestir hoje de ontem pra parecer mais bonito. Como se algo tivesse que ser bonito, mesmo. Falta enxergar que hoje pode ser tão charmoso. Tão charmoso quanto todas as camadas de um vestido do século XIX. As pernas das prostitutas continuam abertas, afinal de contas. As pessoas só decidiram dizer - ou fazer - isso com mais evidência. Sexo é poesia de meio-de-rua e as pessoas pedem mais amor por favor, pra sentimentalizar o cimento. Sim, falta charme no hoje. Mas quem disse que as coisas tem que ser charmosas? Talvez falte esse encanto porque quem enxerga são os meus olhos cansados de tentar ver alguma coisa. Se fosse ontem, enxergariam da mesma forma os vestidos das moças recatadas e as pernas das prostitutas. Tudo sem graça, ainda que burlesco, ainda que rebuscado.
Alguém disse alguma coisa, afinal de contas? O tempo é mudo.
Esqueci o que tinha escrito no começo. Os desenhos andam se apagando mais rápido.

Sunday 27 January 2013

Circense

toda letra
é equilibrista
nas cordas-bambas
nem sempre reti(linhas)
do caderno

Friday 25 January 2013

Canção dos vermes

Escrito com (e quase todo pelo) Noan.

o primeiro mergulha
mas a água se afasta
o segundo se afoga
e o terceiro se arrasta
o que é não escapa
ao que tudo consome
e os vermes tem fome
e os vermes tem fome

o primeiro emerge
e grita com a voz gasta
ao segundo e ao terceiro
eufóricos: basta!
e no fundo do abismo
há aquele sem nome
e os vermes tem fome
e os vermes tem fome

da lama e do caos
a trindade floresce
mas a chama se apaga
e o mundo se esquece
do poder do veneno
que esperam que tome
e os vermes tem fome
e os vermes tem fome

Wednesday 23 January 2013

Refratário


Eu assistia as castanhas serem mastigadas pela boca equipada com uma dentadura muito bem fixada com um daqueles produtos adesivos que prometiam que você poderia morder uma maçã sem perder o sorriso pra ela. O velho reclamava da dor nas costas, lembrando que conseguira uma hérnia por carregar peso demais no trabalho, ou qualquer coisa assim. Ele tinha o jeito que sempre imaginei que fosse o do meu avô (que morreu antes d'eu nascer), com um cheiro de colônia pós-barba, a aparência asseada e uma camisa de botão. Eu prestava mais atenção às castanhas indo do saquinho transparente pra boca dele, do que no assunto que eu já sabia de cor a respeito do orgulho de ter sido um homem trabalhador, que nunca tinha deixado faltar nada em casa. Essa conversa me cansava. Nunca fiz o tipo de homem trabalhador e eu sempre achei repugnante essa supervalorização do trabalho e de como é satisfatório você ver o fruto de horas de esforço sendo recompensadas e tudo isso. Comigo nunca foi assim, porque trabalho, seja lá qual for, é uma obrigação e tudo que se torna obrigatório na minha vida, perde a graça. Já tentei fazer as coisas que eu gosto, para virar um "trabalho por prazer", mas não adianta e eu ainda perco gostos.
E existir tinha se tornado uma obrigação há tempos. E o velho mastigava mais castanhas fazendo um barulho babado. A velhice se anunciara desde quando era muito novo e os cabelos caíram. Parece que desde que ficou careca decidiu que seria velho e pronto, foi. A vida era uma obrigação pra ele, também, mas ele gostava porque era disciplinado. "A culpa é desse teu tempo livre. Mente vazia é oficina do diabo, tu sabe", ele me dizia com aquela cara irritada de ver que eu não iria mudar tão cedo e que, se mudasse, não seria pra melhor. "Vai arrumar alguma coisa pra fazer, para de ser indisposto" e as outras sentenças que denunciavam o desgosto com a minha preguiça saíam feito orações da boca dele na época que ainda tinha dentes.
Pensar que eu conheci esse cara por causa de um trabalho escolar, daqueles que colégios católicos fazem pra cumprir o seu dever com a sociedade e a gente tem que escolher uma creche ou um asilo pra visitar, dar um lanche pra galera, cantar umas músicas e ganhar uns pontos. Lembro que a nossa turma escolheu o asilo pra se diferenciar de todo mundo (que preferia brincar com crianças). Por mim, tanto fazia. Conhecer o Agenor foi uma coisa boa, embora eu não entendesse porque eu simpatizava tanto com ele. Acho que é porque nas horas vagas - que, num asilo, são muitas - ele pintava. Tinha um monte de quadros da irmã que ele havia perdido na época que veio pra cá, quando a cidade tava sendo construída.
Eu detesto castanhas, mas o Agenor fazia questão de me oferecê-las antes de começar a comer. Eu pegava uma ou duas, engolia sem prestar atenção, pra não sentir demais o gosto.
"Tu não gostava de mim quando me conheceu, não. Teus amigo tudo ficaram interessados no que eu pintava e tu ficou emburrado, tu lembra?". Lembro, Agenor. Eu lembro que fiquei emburrado, puto, querendo ir embora e inventei defeito pra cada um dos velhinhos, de forma cruel, por ter sido obrigado a pisar no asilo. Mas cê lembra que eu vim depois de acabar o voluntariado, no natal, te dar aquele conjunto de pintura com uns solventes? Aí cê ficou impressionado que logo eu aparecesse pra te dar presente de natal.
Ele riu com a memória de uns quatro anos atrás, limpando os dedos na calça e disse que ele ainda queria voltar pro Ceará, naquela época. Agora, segundo ele, tava velho demais pra viajar de ônibus e por nada nesse mundo ele viajava de avião. Ia morrer em solo estranho, mas dizia que todo mundo ia pro mesmo lugar, mesmo, então ser enterrado longe de casa não fazia muita diferença.
Eu detesto castanhas, mas eu comia as que o Agenor oferecia só pelo gesto automático de aceitar desde a primeira vez que ele estendeu pra mim um saquinho com elas. E não que fosse obrigação, mas algumas coisas sistemáticas tem o seu charme. Toda tarde de quinta feira, religiosamente, eu dedicava algumas horas ao velho que tinha me ensinado a pintar e que jogava xadrez com o que ele chamava de "malícia nordestina".
Uma vez, a diretora do asilo me disse que a filha do Agenor tinha deixado de pagar pelas coisas dele. "O senhor é o único amigo que ele tem aqui. Acho que tem a obrigação de cuidar do que resta dele. Não tarda a morrer, ainda mais se o deixarem sozinho. Mas a decisão é sua".
Minhas entranhas todas se apertaram e se projetaram pra fora.
Achei que eu fosse explodir.
Eu detesto castanhas.