Sunday 5 May 2013

Like tears in rain


Cores caíam do céu como Lovecraft previra. Cores que não tinham nome nem lugar nas escalas comuns aos olhos humanos, exatamente como ele disse. Acredito que tenham perdido a habilidade de Adão de dar nome as coisas, porque não dava pra pensar em nenhum para elas, nem mesmo encaixá-las entre as já existentes. Se o fizessem, provavelmente não haveria mais luz branca.
Elas desciam do céu normalmente à noite. A primeira caiu na Rússia, sumiu depressa. A maior parte das pessoas nem ficou sabendo direito o que aconteceu além é claro da queda do Meteoro que levantou especulações sobre a volta de Jesus e a vinda de um bebê alienígena que usaria uniforme e salvaria o mundo e que por algum motivo escolheria trabalhar como jornalista (profissão que eu abandonei antes mesmo de exercer).
O caso é que nada disso aconteceu. E foi como Lovecraft havia dito e foi o começo do fim, exatamente a frase mais apocalíptica que eu posso pensar pra falar do que meus olhos vêem. As cores do céu eram estudadas com os métodos séculovinteumnescos antes de sumir por completo e tinham propriedades físicas e químicas que eu não sei discorrer sobre. E elas levaram embora as cores da terra, as que tinham nome. Sobrou apenas o cinza, que é algo em cima do muro entre o completo e o vazio. A Terra secou em cinza e tudo o que resta de vivo são os galhos que a noite, conversam com um barulho retorcido que eu nunca procurei prestar atenção.
A idéia de futuro apocalíptico que eu tinha era menos monótona. Mas tudo pareceu se acostumar à escassez. Tudo é morto e opaco e se arrasta. Nem sangue brilha mais e não há andróides, não há replicantes pra eu notar brilho nos olhos de alguma coisa. Se houvessem, eu os deixaria fugir.
Também não há a adrenalina de um apocalipse zumbi, embora antes do primeiro fim, as pessoas só comessem e cagassem e andassem por aí com as camisas sujas de restos de desatenção ao se alimentar.
De alguma forma, isso me lembra o passado.
Ao menos faz calor. Assim dá pra enxergar melhor. No frio tudo fica mais escuro, também. E o problema não é a presença ou ausência de Sol, mas a neblina daqueles dias nublados que fazem duas da tarde parecerem sete da noite. Isso se ainda se contassem as horas. Ou os dias. Eu, ao menos, não compro calendários há anos.
Eu não sinto fome e faz calor. Isso é bom.
Ainda assim ele procura alguma coisa pra gente. Ele tem isso: precisa procurar o tempo todo, incessantemente. Mesmo que eu não precise de nada, mesmo que não tenha ninguém por perto, mesmo que esteja tudo tão cinza e plano que qualquer coisa mínima que destoasse seria notada a quilômetros. Ele precisava procurar pra não ficar louco. E se não achasse, olhava pra mim. E talvez achasse algo, porque ele respirava daquele jeito que pouca gente hoje em dia respira - pra evitar acabar de vez com os pulmões - fundo a ponto de encher visivelmente a caixa torácica e depois soltava o ar. Tossia, limpava a boca na manga da camisa e voltava a procurar.
Era cego. Sim, tinha olhos meio-vazios, exatamente assim. As pupilas castanhas eram castanhas só até a metade. O resto era esbranquiçado, opaco e tinha uma aparência de recipiente. Eu deduzi que alguém havia retirado metade da cor de café que tinha ali.
Os meus já há muito que são vazios, ou quase (sobra no fim da xícara sempre aquele restinho de qualquer coisa que ninguém consegue beber e eu espero que não evapore).
O ar está úmido demais e essa coisa onde estou sentada não é lá muito confortável. Ele ali parado de costas pra mim, procura. Começo a suar e sei que mais tarde o suor vai querer me abandonar, escorrendo pelas têmporas. Nada permanece, não é mesmo?
Eu quase acredito nisso, mas só até meus olhos encontrarem ele de novo, procurando. Parece que ele é a única coisa que ainda vai estar ali. O tempo todo ou até quando eu decidir olhar de novo.
O vento não faz mais barulho e o chão absorve o som, deixando tudo num silêncio insuportável, aqueles silêncios que antecedem algum susto, que grudam de um jeito pegajoso nos tímpanos. Não ouço nem a minha própria respiração, nem a dele e meus pensamentos também emudecem. Sempre sinto um sufocamento instantâneo nesses minutos diários que antecedem a noite.
 O tempo pesa arrastando pra baixo, pra um outro lado, o que restava de dia e de suposta luz natural, pra dar lugar aquela iluminação de satélite que eu sempre achei triste: algo que não tem luz própria, um espelho gigante e imperfeito. Os postes leitosos se acendem. Se cemitérios ainda existissem, eles seriam quase assim, eu tenho absoluta certeza. Quem sabe até com um cheiro um pouco mais agradável ou apenas o de morte (o que já seria um alívio).
Talvez o mundo acabe mesmo, as baratas já não passam mais nas ruas e de cima aquelas carcaças de condução de eletricidade observam a gente como se fossemos os substitutos menos resistentes dos tais insetos, mas não se movem pra nos matar, não gritam de medo. Apenas nos ignoram, enferrujam e esquecem de conduzir a eletricidade.
Contrair um pouco os dedos das mãos já é o suficiente pra que eles estalem. Movo as mãos para uma posição qualquer de dança, daquelas que ficam gravadas na nossa cabeça pra sempre, desde as primeiras aulas de balé e o caminho dos meus braços é musicado pelo barulho seco dos meus ossos quebrando sem doer ou doendo sem quebrar. Não sei mais a diferença.  Os gigantes enferrujados viram os olhos pra mim e o suor na minha nuca seca ou eu só paro de senti-lo escorregar, com medo. Ele percebe. Percebe que eu quebrei o silêncio de propósito porque quero ir embora e que eu não tinha esquecido de conduzir eletricidade. Quero sair de cima desse resto de metal sem ter que me mexer com cuidado pra não me cortar. A morte cansou dessa gente toda e se machucar significa ter que apodrecer e ainda assim continuar andando. Ele percebe isso também.
Aqui eu penso que algo deveria acontecer, que a monotonia vai dar lugar às explosões ou a qualquer outra dinâmica que não seja a tarefa de respirar, mas a quase-alteração no meu batimento cardíaco se frustra quando uma outra onda de silêncio passa e cala todos os pedaços de mudança no cenário. Tudo fica quieto e eu não quero mais me mexer. Ele não pode me carregar nas costas para sair dali, nem nos braços. Ele não pode nada além de procurar e eu sei disso, sinto a pressão nos ombros dele pesando e forçando-o a suportar o peso da terra nos ombros, mesmo não sendo o substituto de Atlas, que há muito deixara a abóbada celeste desabar pelo espaço.
Talvez tenhamos vindo parar numa espécie de Tártaro sem nos darmos conta. Despencando e despencando e desquarando, perdendo as cores que voltavam pra onde deveríamos estar. Talvez seja só a gravidade brincando de fazer a gente achar que os meteoros caíram na gente, quando na verdade nós é que batemos em pedaços do espaço que não nos pertenciam.  E fomos nos chocando repetidamente até que voassem pra longe todas as folhas, todos os verdes e os tons de sangue.
Não resta aqui cruz vermelha e nem há famílias de sangue azul (as últimas famílias reais notaram isso tarde demais, quando o que lhes escorria do pescoço era tão vermelho quanto ainda permitiam aqueles anos). Não há mais socorro nem hierarquia e por um segundo eu consigo sentir a queda livre do universo em direção a mais ausência das cores que ainda sobram. Elas não tem nome.
Sinto falta de andar descalça. Essas botas me incomodam.
Quanto tempo antes do último choque será que eu consigo ficar sem piscar? Os olhos lacrimejam, não é? Quando eles fazem isso, fica difícil não fechá-los pra desocupar as órbitas, pra que elas não se afoguem e pra que não fiquemos mais cegos ainda. Deveria sentir a queda, sentir frio na barriga, mas não sei mais como fazer isso. E tem essas botas. Qualquer possível conforto que eu pudesse sentir é imediatamente cortado pela aflição que me dá andar com essas coisas malditas me tapando os pés.
Queria esticar as asas, mas sem cor elas não funcionam e não consigo voar. Além do mais, se meus braços fazem barulho ao se mexer de forma menos mecânica que o ato de andar ou balançarem-se como dois mortos ladeando meu corpo enquanto eu caminho, imagino o barulho que elas iriam provocar? Chega de atrair olhares por hoje, chega de querer pensar que a mudança no som traria alguma diferença no que se estende diante da gente. Não há mais nenhum pigmento no ar.
Levanto e ando como dá, não me escuto emitir som nenhum. Não suspiro, isso machuca, apesar deu sentir vontade.
- Fadas não deveriam usar botas. – Ele diz. Demoro um tempo pra decodificar as ondas, a voz, pra lembrar que as pessoas faziam isso. Que elas falam mesmo. Acho que eu deveria sorrir, não é? – É... talvez aqui vocês devam. – Ele toma mais um monte de ar pros próprios pulmões e não tosse.
Procuro a minha voz nas minhas cordas vocais empoeiradas. Não reconheço mais meu jeito de falar, mas digo a ele que sim, que fadas usam botas ali porque o ar é pesado demais pra voar e os nossos pés são frágeis demais pra serem consumidos por esse chão de nada. Acredito que eu afundaria se tentasse.
Ele não tem asas e continua procurando. Tomara que não demore muito. O meu limite de séculos está acabando e eu sei que estamos caindo. Sem parar. E eu preciso levar o que sobra desse lugar pra longe daqui. Só resta ele e mesmo que ele procure, ele sabe.
Seus olhos vazios me encaram. E eu os dele. Existia uma brincadeira ancestral onde não era permitido rir ou piscar – nesse mesmo tempo ancestral, humanos sorriam se olhassem uns para os outros, por isso a brincadeira parecia difícil.
Tudo se concentra.
Continuamos em queda livre.
A luz escassa apaga.
- Ei, você piscou.

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