Saturday 31 March 2012

Marca-páginas involuntário

Esses dias eu estive pensando em como, às vezes, a concordância confunde a cabeça da gente. Não cheguei à nenhuma conclusão que fosse satisfatória. Só tenho em mim frases que concordam mais - comigo.
Acho que cheguei ao fim da reflexão quando me vi diante de um "Dois que são um ou dois que é um?" que ouvi meio sem querer no tagarelar de uns meninos que passaram por mim à caminho de alguma aula. Devo admitir que acho "Dois que é um" mais bonito porque já virou um só antes da metade da frase. "São" ainda é muito plural.
Não ria, eu sei que muitas vezes as minhas reflexões são pouco práticas e eu também não quero que você ache que eu vou andar por aí fiscalizando a nossa concordância, até porque eu bem sei que pra gente já não funciona mais dizer que "é". Parece que nem nossos dedos sabem mais se encaixar e brigam quando tentamos dar as mãos. Vê? Até nossas mãos não são mais a mão que segurava nós dois juntos.
Bem que você me disse que achou, dentro de um caderno teu, a pulseirinha de flores que eu te dei. Não que fosse uma surpresa, mas estavam murchas, feito a gente.
Eram um monte de florzinhas velhas e amassadas que desfaziam a pulseira que eu tinha arquitetado, cansadas, eu imagino, por conta da falta de vermelho próprio. Chato como algumas coisas ficam marrons, não é? E logo você, que gosta tanto de vermelho. E logo eu, que desde pequena tinha esse costume de fazer coroas, anéis e todo tipo de penduricalho ligando florzinhas. Tudo marrom, desbotado e marcando uma página branca - e sem linhas - de caderno.
A gente murchou no singular e no plural e até nos tempos verbais. Até as sementes da tua futura plantação de mamoeiros murcharam e os livros rasgados e rabiscados com ódio à Descartes. Tudo murchou e ficou mais seco que essa minha cidade em meados de setembro. Murchamos sem deixar muda pra brotar dos nossos restos.
E você insiste em me perguntar o que foi que faltou. Se foi sol, se foi água ou se foi terra, quando, na verdade, a gente só esqueceu que buquê não dura porque não tem raiz.

Olhos:

câmera
atrás
dos óculos
atrás
da câmera.

Monday 26 March 2012

Olheira:

Verso acumulado
sob os olhos
quando
sobra poema
na falta
de sono.

Saturday 24 March 2012

Era uma casa muito engraçada

O meu problema não foi ter te visto ir
foi ter que fechar a porta
e ter que aguentar a existência torta
que passou a ser só minha, sem devir.

O meu problema não foi ter te visto ir
foi ter que deixar de fazer poesia
pois nos meus versos eu só sabia
dizer que não queria ter te deixado sair

O meu problema não foi ter te visto ir
foi remendar os pedaços cá dentro
com a mesma linha do sentimento
que tu partires pra fugir

O meu problema é saber
- que mesmo que eu tenha te visto ir -
me fazes de todo arder - e doer, quiçá viver
por ainda morares aqui.

Bilhete sem número

Eu não lembro direito
se é mesmo na 411
que você mora, menino
dono
do
nino

mas só queria dizer
que passei por lá
lembrei de ti
e te mandei
um sorriso
por baixo da porta

ainda ando meio torta
com uma saudade
pesando de cada lado
e o meu poema
não era pra ser rimado
mas acabou ficando assim
pra te dizer um pouquinho
de mim
nesse nosso tempo
(des)encontrado

o jazz mandou avisou
que é bom viver de arte
e deixar tudo à parte
como tua estrofe diz

até pus os pingos nos is
mas deixei pra ti uns pontos
pra você bordar com tinta
enquanto teu chá fica pronto

me desculpe o fim de rima
[acho que deu preguiça]
e deixa eu fazer o arremate:
ando mesmo com saudades
e espero que você
ainda ande
de sapatos vermelhos.

Sunday 4 March 2012

Embriaguez de asfalto

Pegou a latinha de cerveja
e bebeu toda
a grandes goles
escorridos
pelos cantos
da boca
[que a rua bebeu junto]

segurou a namorada
feito garrafa
pela cintura
e beijou com a mesma boca
escorrida
de cevada
e saliva

a latinha, parou no chão
esquecida
findou-se ali, pisada
sem atrativo ou bebida
pra sustentar-lhe
o ego de alumínio

ignorada, chorosa
foi catada
pela moça esquecida
do ego
de saco plástico
e latinhas

dobrou-se no meio
eufórica
alguém esquecido
dera valor
ao lixo
que ninguém lembrava
(descartável?)
depois da festa.