Monday 27 January 2014

Acrofobia II

Daqui de cima nada aparece muito. É bom poder fugir para um nono andar. Não dá pra fazer isso em Brasília que é a cidade-dos-seis-andares. O céu te engole antes que você consiga acessar uma panorâmica mental, uma lembrança de alguma viagem de avião na memória.
Mas daqui de cima nada aparece muito. Nada que me implica, claro. E está essa luz de fim de tarde nesse tom laranja forte misturado com azuis de começo de noite e aqui e ali sempre tem um lilás e um rosa. Essas coisas ainda me dão vontade de pintar. Numa cidade de prédios e árvores competindo por espaço, antes do horizonte, eu vejo as coisas assim, sem aparecer muito. Vejo gente e vejo esse trânsito que me atrasa pro trabalho.
Daqui eu não enxergo segredos.
E não é alto o suficiente pra ser um abismo, mas parece me olhar de volta. Esses nove andares, esse horizonte com refúgio no mar que eu não enxergo, mas que eu sei que está ali. Pelo salinidade que escorre dos meus olhos, que contém o mar de vez em quando.
Daqui eu não consigo ouvir segredos distintos. A cidade ainda quer me contar alguma coisa, eu seu porque os carros sussurram bem alto no contato com o asfalto da cor do meio dia.
Mas que horas eram mesmo?
Daqui eu não sinto o cheiro do Capibaribe. É só o meu, misturado ao de qualquer coisa que o vento escorre pelos andares abaixo. Qualquer coisa que dói em qualquer parte. Qualquer coisa que deveria ser o motivo deu estar aqui de frente pra mim mesma exposta sob a luz de postes que se repetem por quilômetros. Eu queria saber o que é. Talvez o que escorre andares abaixo sejam as horas.
Acho que vou deixar algo cair. Tenho essa impressão sempre que estou em lugares altos. Nem precisam ser altos demais, mas tenho. Sinto que qualquer coisa pode escorregar das minhas mãos, seja o que for, mas daqui a possibilidade não é tão assustadora por causa do colchão de copas de árvores que antecede o chão.
A queda parece macia.
E talvez seja eu me derrubando.

Sobre atemporalidades I

se eu te deixasse esquadrinhar o meu corpo com a tua minúcia
sei que tu me leria do mesmo jeito, num piscar de almas
e saberia olhar essa minha falta de decoro com a língua
essas minhas pernas tontas que ainda acreditam que é bonito
o meu desequilíbrio pouco charmoso, a minha labirintite emocional

tu me ouviria como música, com aquele teu ouvido de futuro saxofonista
atual baixista, guitarrista que enrola um pouco pra dançar
com os dedos
tu saberia ouvir os meus que compõem melodias nervosas se estalando uns contra os outros
se instalando em pedaços teus pra criar a liberdade em raiz

e tu me tocaria de olhos fechados, por saber que eu não tenho medo do escuro
por me abrigar na penumbra por causa dos meus outros medos mais claros
e teria todas as vezes as minhas frases repetidas sobre como teus olhos
como teus olhos são tão
teus olhos são tão mais bonitos por serem castanhos

tudo do jeito que tu já faz.

Tuesday 14 January 2014

Acrofobia

a civilidade
é uma vertical
onde as pessoas cagam
umas
sob(re)
as
outras.

Thursday 2 January 2014

Some Direction Home

Você é uma boa desculpa pra começar coisas boas. Na verdade, penso em você como um bom começo, todas as vezes. Todas as vezes e isso me soa meio triste, porque descaminhamos muitas vezes, e perdemos os ritmos, mas agora parecemos andar no mesmo passo. Isso não passa de um bilhete longo. Só não sei o quão longo ainda.
Percebe que estou usando muitos pontos ao te escrever? É que estou parando muito para pensar. Não porque te escrever não me faça fluir, porque você sabe que faz, é só que ultimamente a minha cabeça tem maquinado demais e minhas letras ficaram meio adormecidas no teclado.
Ainda sei que transito pelos dias de uma forma muito esquisita e que você, muitas vezes, não entende porque eu tenho tanta resistência com o tempo. Você sabe que eu ando fora de qualquer relógio, mas isso já te confundiu tanto e, apesar disso, tu nunca me colocou grades de ponteiro.
É que me assustam as precisões temporais. Não dá pra acreditar muito nelas e, pro tempo não me escapar pelos dedos, eu escapo pelos dedos do tempo. Dou as costas pra qualquer coisa que me faça sentir presa demais, ou que tente me organizar.
E você me disse que se apaixonou pelas minhas costas. Como se tivesse sido algo à primeira vista, como se antes de conseguirmos estar nós dois, não houvesse aquelas divergências de presentes e passados. Como se nada mais importasse, bem verdade, você se apaixonou pelas minhas costas e sabia tocá-las sem eu precisar dizer que era o meu carinho preferido. Você me percebia com os olhos fechados porque sabia que pra me entender essa seria, provavelmente, a primeira medida a se tomar. Ao mesmo tempo, os teus olhos sempre me observavam atentos.
Acontecemos ao costurar pedaços. Acontecemos apesar das minhas birras de achar que eu sempre chego atrasada, que estou errada e torta, que eu não deveria. E eu sei que eu errei muito, que doí e que nunca foi de propósito, mas eu não conseguia me entender nem me explicar e você conseguiu entender isso todas as vezes, conseguiu não ir embora, às vezes com muito custo. Tu foi uma estação no meio das idas e vindas de mim mesma. Tu ficou quando até eu não sabia mais ficar. Tu se fez casa pro meu corpo cansado, pros meu nome composto de dois pesos e um palíndromo. Tu me achou lendo ao contrário o que eu não arriscava mais.
Construímo-nos em meio a todas essas idas e vindas e eu me via errando de novo e de novo contigo e com os teus olhos e os via castanhos e depois se fechando pra se esforçar pra me enxergar. E os teus punhos machucados de novo e de novo por raivas que eu te fiz passar, de pedacinhos que eu quebrei. Pior é o teu silêncio. Esse jeito que tu abaixa os olhos e o tom de voz, me chama pelo nome e diz que vai dormir. Aprendi a te ler e entender que ficar palavreando hermeticamente quer dizer que tu está tentando fechar em ti uma explosão. Aprendi a lidar com isso de uma forma tropeçada, logo eu, que sou toda cheia de explosões e tenho que falar e não consigo me conter.
E tu nunca me colocou um dedo de culpa e tu nunca quis mudar o meu jeito de fazer, de não fazer, de ser desordem. Poucas vezes na vida eu vi tanto esforço pra me entender. Às vezes nem eu me esforçava tanto. Você sempre me segurou com os mesmos braços e me fez gostar de novo de pincéis e paletas de aquarela.
Lembro quando comecei a morar no teu sorriso. Me passa na memória te vendo agora respirar, o jeito como eu sorrio quando tu me beija e como você, desde sempre, achou isso bonitinho, porque sabe que eu rio porque evaporo em borboletâncias. Lembro quando você me perguntou se eu estava apaixonada e eu ri dizendo que assim não tem graça, porque estar apaixonada não é tão divertido quanto estar borboletando. E sim, eu estava borboletando. Em todos os nossos começos e todas as vezes que tu diz que sou chata naquele tom de falar besteira, ou quando reclama da comida vegetariana com a mesma voz e quando tu me chama pelo nome que escolheu me dar, que me coloca raiz, sem me tirar a alma de cigana e nem a liberdade dos meus passos feitos de tinta.
Desorganizamos mais ainda o mundo um do outro, de um jeito ora sutil, ora evidente e sem nenhuma cerimônia. Com a intensidade constante de antônimos que não são opostos em momento algum. Montamos e destruímos casa até entendermos a liberdade de caber. Morar sempre foi a liberdade de amar com sorrisos e gestos percebidos em caminhadas longas de mãos dadas e assuntos sem oráculo.
E quando eu comecei a morar no teu sorriso, quebrei seus relógios.