Wednesday 23 January 2013

Refratário


Eu assistia as castanhas serem mastigadas pela boca equipada com uma dentadura muito bem fixada com um daqueles produtos adesivos que prometiam que você poderia morder uma maçã sem perder o sorriso pra ela. O velho reclamava da dor nas costas, lembrando que conseguira uma hérnia por carregar peso demais no trabalho, ou qualquer coisa assim. Ele tinha o jeito que sempre imaginei que fosse o do meu avô (que morreu antes d'eu nascer), com um cheiro de colônia pós-barba, a aparência asseada e uma camisa de botão. Eu prestava mais atenção às castanhas indo do saquinho transparente pra boca dele, do que no assunto que eu já sabia de cor a respeito do orgulho de ter sido um homem trabalhador, que nunca tinha deixado faltar nada em casa. Essa conversa me cansava. Nunca fiz o tipo de homem trabalhador e eu sempre achei repugnante essa supervalorização do trabalho e de como é satisfatório você ver o fruto de horas de esforço sendo recompensadas e tudo isso. Comigo nunca foi assim, porque trabalho, seja lá qual for, é uma obrigação e tudo que se torna obrigatório na minha vida, perde a graça. Já tentei fazer as coisas que eu gosto, para virar um "trabalho por prazer", mas não adianta e eu ainda perco gostos.
E existir tinha se tornado uma obrigação há tempos. E o velho mastigava mais castanhas fazendo um barulho babado. A velhice se anunciara desde quando era muito novo e os cabelos caíram. Parece que desde que ficou careca decidiu que seria velho e pronto, foi. A vida era uma obrigação pra ele, também, mas ele gostava porque era disciplinado. "A culpa é desse teu tempo livre. Mente vazia é oficina do diabo, tu sabe", ele me dizia com aquela cara irritada de ver que eu não iria mudar tão cedo e que, se mudasse, não seria pra melhor. "Vai arrumar alguma coisa pra fazer, para de ser indisposto" e as outras sentenças que denunciavam o desgosto com a minha preguiça saíam feito orações da boca dele na época que ainda tinha dentes.
Pensar que eu conheci esse cara por causa de um trabalho escolar, daqueles que colégios católicos fazem pra cumprir o seu dever com a sociedade e a gente tem que escolher uma creche ou um asilo pra visitar, dar um lanche pra galera, cantar umas músicas e ganhar uns pontos. Lembro que a nossa turma escolheu o asilo pra se diferenciar de todo mundo (que preferia brincar com crianças). Por mim, tanto fazia. Conhecer o Agenor foi uma coisa boa, embora eu não entendesse porque eu simpatizava tanto com ele. Acho que é porque nas horas vagas - que, num asilo, são muitas - ele pintava. Tinha um monte de quadros da irmã que ele havia perdido na época que veio pra cá, quando a cidade tava sendo construída.
Eu detesto castanhas, mas o Agenor fazia questão de me oferecê-las antes de começar a comer. Eu pegava uma ou duas, engolia sem prestar atenção, pra não sentir demais o gosto.
"Tu não gostava de mim quando me conheceu, não. Teus amigo tudo ficaram interessados no que eu pintava e tu ficou emburrado, tu lembra?". Lembro, Agenor. Eu lembro que fiquei emburrado, puto, querendo ir embora e inventei defeito pra cada um dos velhinhos, de forma cruel, por ter sido obrigado a pisar no asilo. Mas cê lembra que eu vim depois de acabar o voluntariado, no natal, te dar aquele conjunto de pintura com uns solventes? Aí cê ficou impressionado que logo eu aparecesse pra te dar presente de natal.
Ele riu com a memória de uns quatro anos atrás, limpando os dedos na calça e disse que ele ainda queria voltar pro Ceará, naquela época. Agora, segundo ele, tava velho demais pra viajar de ônibus e por nada nesse mundo ele viajava de avião. Ia morrer em solo estranho, mas dizia que todo mundo ia pro mesmo lugar, mesmo, então ser enterrado longe de casa não fazia muita diferença.
Eu detesto castanhas, mas eu comia as que o Agenor oferecia só pelo gesto automático de aceitar desde a primeira vez que ele estendeu pra mim um saquinho com elas. E não que fosse obrigação, mas algumas coisas sistemáticas tem o seu charme. Toda tarde de quinta feira, religiosamente, eu dedicava algumas horas ao velho que tinha me ensinado a pintar e que jogava xadrez com o que ele chamava de "malícia nordestina".
Uma vez, a diretora do asilo me disse que a filha do Agenor tinha deixado de pagar pelas coisas dele. "O senhor é o único amigo que ele tem aqui. Acho que tem a obrigação de cuidar do que resta dele. Não tarda a morrer, ainda mais se o deixarem sozinho. Mas a decisão é sua".
Minhas entranhas todas se apertaram e se projetaram pra fora.
Achei que eu fosse explodir.
Eu detesto castanhas.

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