Wednesday 18 September 2013

O não-tão-velho safado

"Não passo dum quadrúpede que aprendeu a andar nas patas traseiras. Me comporto com muito cuidado, pois, se cair, caio de quatro, fico no meu natural e não levanto mais."
(Barão de Itararé)

Henrique não está resfriado. Na verdade, a última vez que ele ficou doente foi por conta de uma chuva que pegou levando uma turista recém-chegada para conhecer Porto Alegre. “Não tenho preferência com cidade debaixo de chuva, mas parece que do lado de uma guria, chovendo ou não, a cidade fica mais bonita ainda. O problema é que não pode faltar café.”, citação de em todas as conversas consigo mesmo, andando em casa (vezes as quais ele diz estar falando com o gato) e parte da boa e velha lábia no diálogo com a recém-chegada.
Henrique Ribeiro da Silva tem no sangue uma cretinice gaúcha muito peculiar e nada genérica, apesar do nome sugerir o contrário. Membro da maior família do país, adquiriu durante a vida uma desenvoltura com o mundo que brinca com o samba, mas na verdade tá mais pra blues. Aos vinte e três anos que carrega no lombo, somam-se mais cinco, que vieram junto com os dezesseis anos e uma puberdade desregrada: Sara, a menina dos olhos do gaúcho auto-entitulado o mais canalha do Rio Grande e do Brasil, com esses cinco anos de um charme que adora ballet e aprende a gostar de rock aos poucos – blues ainda a deixa meio indisposta, mas quem sabe quando for mais velha. Sara tem os olhos atentos e curiosos típicos da idade e mais um pouco da sagacidade herdada do pai pra questões de afronta aos hábitos católicos.
Depois de toda a experiência jurídica pra organizar os demais pormenores de guarda, fica decidido que ele pode vê-la finais de semanas, feriados, e quando mais tiver vontade. Pagar pensão e todas aquelas obrigações adultas chegaram cedo, sem muito alarde. Terminando a semana, seria dia de vê-la de novo. Mas ainda era quarta-feira, e com o fuzuê escolar, os horários ficavam apertados pra guriazinha.
Porto Alegre cabe na palma da mão do Henrique, e a Osvaldo Aranha é a linha da vida que corre na palma. Ainda chove e ele anda na chuva caminhando pelo Parque, apontando pichações leminskianas não autorizadas pelos muros e comentando sobre qual é o lugar mais fácil ali perto de se arranjar maconha. Dessa vez, ele paga, já que nenhum dos amigos está por perto e o estoque pessoal acabou. “E se tu vem em Porto Alegre e não vai na Lancheria do Parque, então tu não veio em Porto Alegre, igual aquela história do Papa e Roma”. Deu passagem pra moça, puxou a cadeira pra que ela sentasse e comprou uma cerveja gaúcha. Nunca está frio demais pra uma cerveja, e era a bebida mais barata disponível – fora o que não tinha álcool. “Isso aqui”, ele diz, “era onde a nata intelectual se reunia nos anos setenta. Era o antro dos boêmios de Porto Alegre e convidados. Era o tempo que os universitários faziam faculdade por algo mais do que ‘uma carreira de sucesso’”. Universitários são uma raça extremamente irritante aos olhos dele, hoje em dia. Tanto que largou a faculdade de direito mal na metade. Pensou até em começar um curso de Letras, mas a indisposição não ajuda e ter que se sustentar sozinho também não. Mas ele nem se incomoda com isso. Por enquanto, as coisas estão funcionando bem assim, com essa ausência acadêmica. Observa a Lancheria, a rua, a Lancheria de novo.
Um homem de jaqueta de couro preta, integrante de uma banda local entra pra comprar chicletes e ele comenta com a moça que este é guitarrista de uma banda que é uma espécie de Legião Urbana dos gaúchos. TNT, o nome. Ri, porque reconhece no olhar de sua acompanhante que ela nunca ouvira falar. O pai do sujeito tinha morrido havia um tempo, tinha dado no jornal uns dias antes, mas foi morte de político e como Henrique odeia política, não prestou tanta atenção no que disseram. Não gosta de política por se saturar desde pequeno. Filho de militante, o velho Sergio Caveira, que se filiou a um partido de esquerda bem cedo, participou até da fundação dele. Depois, foi exilado no Uruguai por a organizar uns protestos que acabaram em pancadaria. Lá, diz ele, que entrou pra guerrilha, tomou um tiro no joelho, dormiu sabe-se lá quantos dias no mato até ficar bom da perna. Em 88, foi candidato a vereador em Porto Alegre com o Slogan "você que bebe, fuma e cheira, vote no Caveira." e charges comemorativas do Santiago e do Henfil pra ilustrar a campanha. Até hoje ele guarda um bule de chá com os desenhos estampados. Claro que não foi eleito, mas tomou um porre pra comemorar. Em 2000 e pouco, ele tentou ser vereador em Glorinha, cidade que ele mora há vinte e poucos anos no seu sítio. Não foi eleito, também. Mesmo que dessa vez o slogan fosse bonitinho.
Marcio Petracco termina de enfiar os chicletes recém comprados no bolso e vai embora sem ser reconhecido por mais ninguém. Pelo menos não manifestadamente. A chuva do lado de fora ainda escurece o céu e pinga pela cidade toda, escorrendo a sujeira dos telhados. Marcio saiu carregando blues nas costas, pintando tudo com acordes chorosos. Nesse cenário, eles também saem da Lancheria no mesmo passo e ele tira a gaita do bolso: é bom com improvisações. Melhor ainda quando bêbado. Improvisa e emenda um Bob Dylan por saber que a garota gosta. Ele é bom com a lábia de cretino. Melhor ainda quando bêbado.
A Igreja de Santa Teresinha, arquitetada no estilo Gótico que fica ali perto, subindo mais um pouco pelo parque, sempre pela Osvaldo Aranha, é uma atração a parte que ele faz questão de mostrar, mesmo que seja pouco familiarizado com os costumes católicos. “Aqui é bom de fotografar. Gente rezando parece que fica mais fotogênica, ainda mais com essas vela e esses santo tudo por aí”, ele tenta sussurrar pra não ser encarado pelas velhinhas carolas ajoelhadas ali nos bancos cobertos de veludo vermelho-forro-de-caixão durante missa. Não sendo bom entendedor da liturgia, acha engraçadas as mesmas velhinhas se dispondo numa fila por uma bolacha. Pega a câmera na mochila, regula os botões e vai andando. “Acho que não tem problema roubar alma de estátua, né?”, ri por ter falado alto demais. Dali para a primeira hora da noite, Porto Alegre se despediria de mais um visitante satisfeito e Henrique continuaria o caminho pelo Osvaldo Aranha de volta pra casa, tentando não ser assaltado e afastando as paranoias. Fica difícil prestar atenção demais em possíveis assaltos quando se está com a cabeça cheia de uma maconha recém-fumada escondida da polícia ainda antes de despachar a turista pro destino final.
Henrique não está resfriado. Não tem uísque caro na dispensa da quitinete, nem charutos ou cigarros importados na mesa de centro da sala. Mal tem uma dispensa no apartamentinho de 9x3m, cujas medidas são facilmente questionáveis, tendo em vista que foram tiradas por um grupo de amigos bêbados, em um dia qualquer onde ele conheceu a vizinha. Caminha pelos metros, tentando não tropeçar no gato, Rivelino. Está inquieto. Ler um bom poema sempre lhe inquieta as pernas. Uma boa frase, que seja. Meses atrás, a mãe – que havia rompido com o namorado - viera passar umas semanas com ele, enquanto arrumava um outro lugar pra morar. O apartamento diminuiu até ficar claustrofóbico e ele sentiu falta de ar até que ela fosse embora.
 Não tem mesmo uísque caro ou cigarros importados em nenhum canto da quitinete, mas luxo nunca foi uma falta que a vida permitiu sentir. Não que ele fizesse questão de senti-la, também. Um vinho de supermercado e o mini estoque de maconha adquirido naquela tarde davam conta do recado de um jeito mais prazeroso. “Luxo é uma puta duma coisa chata, já viu?”, ele comentaria mais tarde com a musa de alguns dos seus poemas. Essa é mais musa do que as outras, talvez por haver charme na profissão: trabalha numa bilheteria de Cinema. Ou, quem sabe, por ter sido internada algumas vezes em clínicas psiquiátricas espalhadas pela cidade. Termina de dar voltas pela casa, para em frente à janela pequena demais pra extensão do próprio olhar. A noite começa calma e ele está atrasado.
Antes de ir para o Cinema encontra-la, passa na livraria. Vai pelo caminho que corta o Parque, na cidade que já não chove tanto. Ele resmunga sozinho, andando com o mesmo passo observador de todos os dias e nota que talvez vá chover novamente mais tarde.
Idas à livraria são, necessariamente, um convite a surrupiar livros. Para ele é fácil e rápido, devido aos muitos anos de prática – em seu quarto minúsculo, há uma estante de resultados bem sucedidos. Lembra-se sempre de pegar uma edição de bolso, menos complicada de esconder. Dessa vez, procura um título de autor não tão maldito quanto os que está mais acostumado a ler – por questão de gosto e identificação. Segue o procedimento de sempre: vai prum canto escondido, tira o selo metálico da contracapa do livro e coloca na boca. Sai de cara limpa e com aprova do crime entre os dentes.
Henrique anda com Porto Alegre numa lata de cerveja comprada no final do caminho pro Cinema. E lá está ela: a musa. Poeta como é, não é tão poeta assim se for pra observar de um viés que morre de amor. Morre, sim, mas só até conseguir transar. Arranca uns dois poemas das demais moças com quem dorme (ou fantasia dormir) e parte para a próxima da fila como quem troca as músicas que de tanto ouvir, enjoam. Antes de pousar os olhos em definitivo na garota do caixa, olha as pernas de uma outra que sai de mãos dadas com o namorado.
Não tem um diálogo longo com a menina do caixa, só uns cumprimentos, uma exigência de devolução de livro emprestado e as esperadas reclamações sobre o atraso nas respostas e e-mail. Escritor compulsivo que é, tira da mochila os papéis e blocos de anotações pra esboçar qualquer coisa que não mostra pra ela, que se engraça pra cima dele. É uma musa nada platônica, desde que se conheceram, já que se conheceram com o único propósito de se esfregar. Mas a amizade foi pra frente. Ela paga um café pra ele, sempre que pode. Ele tem que voltar pra casa. Tem ensaio da banda e está atrasado. Decide pegar o ônibus ao invés de ir a pé pra casa do vocalista – onde ocorrem os ensaios. Uns meses atrás, ele tava olhando esse mesmo ônibus com um anúncio de concurso literário que, se você mora em Porto Alegre, tem a obrigação de saber que existe. Se inscreveu sem compromisso e ganhou espaço entre os demais poetas pra ter seus poemas publicados ali mesmo, pelos ônibus que todo mundo via.
A banda que começou numa dessas caminhadas pelo parque, quando cruzou, por acaso, com um cara que ele nunca tinha visto na vida que puxou assunto porque o bom e velho Henrique estava sentado tocando gaita. Foi convidado imediatamente com a banda ainda meio incompleta e quase toda capenga. Mas já que o lema é diversão, decidiu por ir mesmo, e ver no que que ia dar. Deu em briga por e-mail num xingamento sem fim entre os integrantes, mas a banda ainda ensaia. Chama-se Sanatório Paternon, nome esse adotado por conta da existência desse dito Sanatório no bairro do vocalista - mesmo lugar onde a musa já se internou – mas é mais conhecida como A Gaita e a Guita.
Sempre bebe mais do que ensaiam, mas sai um blues bom, quando é regado à álcool. Blues é o ritmo de Porto Alegre, blues é o ritmo do Henrique, que improvisa solos de guitarra com a maior cara de Keith Richards, que já chegou a matar em um dos escritos de gaveta.  Sai de madrugada pra voltar pra casa, sem carona e sem vontade de prestar atenção ao caminho de volta. Tá de madrugada e a hora é de ser poeta. “Nessas hora, eu queria era viver nos anos setenta, mas que se foda!”, ele grita pra os colegas da banda, descendo as escadas pra saída.
Desromantizando o poeta de máquina de escrever, ele senta na frente de um computador e abre as redes sociais todas. Bota uma água no fogo pra fazer um miojo, troca a areia do gato e reclama do barulho do cachorro da vizinha. “Porra, Rivis, esse cachorro filho da puta ainda vai levar um susto de vingança por ter tentado te comer o outro dia, escreve bem!”. Senta de novo na frente do computador, com uma seda velha e úmida pra tentar enrolar o último baseado do dia. Demora, porque seda úmida fica mais difícil de manusear. Anda até a janela ainda dando babujadas no baseado pra fechar tudo direito e se apóia na janela. A noite não tem lua e o apartamento parece sumir nas costas dele com o céu na frente dos olhos. Ele desce o olhar pra janela da vizinha, porque gosta de saber com quem e como ela anda transando – pra colher material literário.  Passa uns segundos de melancolia até terminar cigarro caseiro e anda pelo apartamento até uma frase genial ocorrer. Havia lido que Hemmingway escrevia de pé e tentou a experiência sem sucesso: precisava sentar. Mas tinha boas idéias de pé e assim ficou até elas aparecerem. Se a primeira frase não surgisse, ele recorreria às anotações de rua e se ainda assim não sentisse o tesão literário que costuma o arrebatar com frequência, apelava pra alguma das musas, sendo quase sempre a principal escolhida, a moça do Cinema.
Na frente do computador, com o vinho barato do lado ele não precisa de muita coisa. Só se o vinho acabar, claro. Aí ele vai imediatamente vai imediatamente buscar mais e se não tiver, vai dormir.
“Eu sou contra cocaína, rapaz, mas se me oferecerem eu não resisto, não. Podem contar aqui nos dedos as vezes que eu cheirei, também. Foda-se, eu nem devo satisfação pra ninguém, ué. Aquela ali, ó, de um e noventa? Pois é, eu com um e setenta e pouco quase comi, mas era fresca demais.”, ele ria numa roda de poucos amigos, no outro dia, numa madrugada boêmia não planejada. Ria com vontade mesmo, contando que a sexta-feira chega junto com a filha e se lamentando por querer uma musa que possa apresentar pra família, pro tio que fazia as capas dos livros do Leminski. Reclama porque tá mais bêbado do que os outros dias da semana. Pega um bloco de anotações na mochila e pede uma caneta emprestada do garçom. O que tá escrito, ele não mostra. “Aposto que amanhã eu não entendo minha letra”.

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