Tuesday 5 February 2013

Doze


Escrevo mentalmente, imaginando as coisas mais como desenhos do que como linhas escritas. De qualquer forma, não uso caderno com pauta. Meu traço nunca foi muito preciso, gosto de dar impressões não-fiéis pra que as pessoas liguem pontos, imaginem o quiserem da falta de exatidão. Escrevo mentalmente desfazendo a ideia de desenhar por pura preguiça, porque digitar é mais fácil e meu ânimo é pouco. Termino de redigir o primeiro parágrafo e paro pra fazer desenhos no box embaçado. Escorri pela parede até sentar no chão há uns quinze minutos atrás, quando liguei o chuveiro quente no mais quente possível. Esqueço o primeiro parágrafo, aperto as têmporas pra sair alguma idéia que seja. Sinto desfazer entre os meus dedos, pensamentos que eu não queria ter deixado escapar. Droga, devo ter apertado a cabeça com muita força já que agora, me escorre dos olhos também o que eu não queria deixar escapar. Mas a água quente leva embora o gosto salgado antes que eu possa sentir de verdade, embora eu consiga definir bem o que toca meu rosto. Decido sair só depois que meus dedos enruguem. Aí, os espelhos todos já estariam suficientemente vestidos de vapor e eu poderia me livrar de olhar pra dentro e voltar pro quarto sem maiores perturbações.
Tudo aqui funciona numa ordem-sem-ordem onde, na verdade, eu poderia muito bem estar deitada no teto e onde as paredes mudas pedem pra ser lidas. E o tempo que se instalara ali, fingindo não querer nada, pesando a ponto de parecer parafusado à superfície que o sustenta.
O fato de não poder mudá-lo de lugar sempre me irritou muito. Ele fica ali, parado na minha prateleira, sem me dar espaço pra guardar mais livros, - me obrigando a comprar mais prateleiras - girando num círculo interior tão constante e preciso que me dá náusea existencial.
Penso em mais um parágrafo e anoto palavras-chave. Papel sem pauta. O tempo corre sozinho sem sair do lugar que me incomoda. Além do mais, ele nunca se basta, embora sempre se canse e prefira sempre um tempo além dele mesmo. E, ah, como reclama! Reclama do clima que está mais quente ou mais frio, ou mais seco ou mais úmido e que a cidade ainda é nova demais. Reclama que não se fazem mais histórias como antigamente.
Pra mim, sempre foi pior do que saber que não se fazem mais histórias como antigamente, saber que não se escrevem histórias do agora, como agora. Há um pudor pelo hoje que eu não consigo entender, como se tivéssemos que vestir hoje de ontem pra parecer mais bonito. Como se algo tivesse que ser bonito, mesmo. Falta enxergar que hoje pode ser tão charmoso. Tão charmoso quanto todas as camadas de um vestido do século XIX. As pernas das prostitutas continuam abertas, afinal de contas. As pessoas só decidiram dizer - ou fazer - isso com mais evidência. Sexo é poesia de meio-de-rua e as pessoas pedem mais amor por favor, pra sentimentalizar o cimento. Sim, falta charme no hoje. Mas quem disse que as coisas tem que ser charmosas? Talvez falte esse encanto porque quem enxerga são os meus olhos cansados de tentar ver alguma coisa. Se fosse ontem, enxergariam da mesma forma os vestidos das moças recatadas e as pernas das prostitutas. Tudo sem graça, ainda que burlesco, ainda que rebuscado.
Alguém disse alguma coisa, afinal de contas? O tempo é mudo.
Esqueci o que tinha escrito no começo. Os desenhos andam se apagando mais rápido.

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