Tuesday 19 November 2013

Ameisenhaufen

Faltavam quinze minutos pro meio dia de uma quarta feira calorenta e engordurada. Tinha esse cara imenso nessa fila maior ainda pra comprar passagens de ônibus - desses caras com músculos estranhos que parecem cheios de água. Cogitou a possibilidade de espetar o gigante com uma agulha e imaginou cada um daqueles músculos disfuncionalmente hipertrofiados estourando que nem balões d'água. Andou até o final da fila rindo do pensamento idiota que acabara de ter, calculando, em outra nuvem de pensamento, quantas vezes por dia, tinha esses insights cinematográficos excessivamente fantasiosos. Numa outra nuvem, lembrava que tinha que comprar as passagens pra dali a algumas horas. Tirou da bolsa a carteira por mania, porque ainda faltava muito pra que precisasse efetivamente fazer isso. Sentia-se suar por baixo da camisa - péssimo dia pra escolher usar preto. O lugar inteiro parecia mais quente e o Sol invadia as janelas com uma violência imprópria à luz.
Dez minutos. Nada da fila andar. Continuava quente. O cara imenso trocava o peso do corpo de uma perna pra outra e bufava de impaciência - e calor. Ele era tão enorme que dava pra supor seus movimentos mesmo na distância em que estavam.
- Com licença...
Demora um pouco até conseguir estourar todas as nuvens de pensamento. Palavras, pra alguém distraído, não funcionam tão bem quanto agulhas.
- Com licença...?
- Ahnm... Hã?
- Você saberia me dizer o último horário de ônibus pra Urd?
- Urd?
Na verdade, havia pensado "Mas o que, diabos, uma pessoa quer ir no último ônibus pro passado?", mas não era da sua conta, então deixou-se repetir por reflexo.
- Sim, sim... assunto de família.
- Ah...
- Então...?
- Hã?
- O último ônibus...
- Ah! Urd, né? Desculpa, moça, mas eu não faço idéia. Minha licença pra transitar no tempo já está vencida há tempos. Meu passaporte temporal tá jogado pelas coisas de casa, sabe como é...
- Coisa de gente nova...
- Deve ser.
Sentiu que a senhora engataria numa conversa de fila. Ah! Como detestava conversas de fila.
- E você tá indo pra onde?
- Pegando o ônibus com o horário mais próximo pra estação de Hagal. Disseram que é bom passar essa época quente por lá. Paisagens bonitas...
- E não precisa de documento pra ir?
- Esses eu tenho ainda.
Burocracia continuava sendo o seu ponto fraco. Forçou-se a não encher nenhuma nuvem de pensamentos que o dispersasse demais. Pegou o comunicador no bolso e sorriu disfarçadamente ao olhar as horas.
- Que foto bonita essa. Vocês fazem um casal muito bonitinho.
- Ah, brigada...
- São um casal, né?
- Tecnicamente...
- São bonitinhos, de qualquer jeito.
- Eu até concordo.
Riu. Tinham-se ido mais minutos. A fila andara um pouco. Reparou que estava mais perto do sujeito enorme. É, um grupo de pessoas tinha saído da fila. Na certa, desistiram por causa do calor que aumentava. Que horas seriam agora? Tinha acabado de ver e já se esquecera. As ondas de calor sufocam o ambiente, fazendo todo mundo dentro do terminal se afogar aos poucos no Sol.
"Essa merda deveria ter um ar-condicionado", pensa. O grandalhão continua brincando de trocar o peso nas pernas e parece que todo o terminal brinca com ele. Ou talvez o calor esteja dando essa impressão. O peso indo pra lá, e pra cá equilibrado em pernas invisíveis.
Um baque.
O cara grandalhão tinha caído no chão. Era uma cena curiosa, um brutamonte daquele sendo amparando por outras pessoinhas tão menores. Aqueles músculos deviam pesar um monte. Imagina carregar litros e litros de água.. pesa bastante.
Começou a pensar sobre isso, mas evitou que a ideia corresse solta: precisava ir lá ajudar o cara. Claro. Tinha feito todos aqueles cursos de realidade virtual sobre como sobreviver a acidentes nucleares e situação de risco e entre essas coisas havia um treinamento básico de primeiros socorros. Devia servir.
Enquanto andava em direção ao homem, percebia que a aglomeração de gente se desfazia e que largaram o cara no chão. Mais perto, viu duas mocinhas que ajudaram a amparar a queda abanando as mãos. O calor havia aumentado a ponto de causar falta de ar e estava extremamente claro. Por um segundo, achou que estivesse em Vênus, que mesmo com todas as barreiras solares continuava extremamente quente. Se ajoelhou pra tentar ver o que acontecia ao homem. As pessoas em volta se sentavam, passavam mal. A fila se dispersava, os atendentes eletrônicos tossiam. E o cara parecia estar fervendo. Fervendo como se toda a água que imaginara estar abrigada naqueles músculos estivesse entrando em ebulição. E emanava calor. Fervia. Era difícil encostar nele àquela temperatura e nenhum treinamento havia ensinado alguma coisa assim. O Sol parecia se concentrar nele e...
Ele pegou fogo.
A temperatura no terminal estava alta o suficiente para ativar os alarmes de incêndio e a água começar a cair do teto um pouco antes da combustão do sujeito, que se desfez ali na frente de todo mundo numa pasta de carne, ossos e seja lá o que tinha naquele monte de músculos esturricados e ensopados.
Imediatamente o calor diminuiu e o Sol pareceu voltar pro lugar.
Seguiu-se o procedimento padrão de retirada das pessoas da área e da entrada das equipes táticas de polícia, a de saúde e a de bem estar público pra limparem a sujeira. Infelizmente o terminal teria que ser fechado até segunda ordem para uma apuração. Infelizmente, as testemunhas teriam que depor. Teria que ligar e dizer que amor, vamos ter que adiar a viagem, mas eu prometo que é no máximo até amanhã. Teria que dizer que é que um cara explodiu aqui, amor, meio que pegou fogo e não, não é só figurativamente. Teria que se explicar melhor, claro. Foi pra um canto mais afastado pra usar o comunicador. Estava sob os olhares dos andróides da equipe de segurança. Explicou-se rápido e impaciente, mas sem maiores complicações. Voltou pra perto das testemunhas e ficou esperando a sua vez abrindo e enchendo nuvem após nuvem de pensamentos com anotações mentais de como o tempo deveria funcionar errado quando se está esperando pra depor, ou esperando qualquer coisa ou como deveria voltar a acreditar em superstições dos Antigos, porque tinha quebrado um espelho na semana anterior.
As horas aqui transcorrem atropeladas, depõe como se deve, tentando não demonstrar a impaciência que sente. Vai embora e volta para casa pelos túneis, porque sabe como é, é sempre mais rápido pelos túneis.
Os blocos televisivos nas praças de encontro dos entre os túneis mostravam os relatos das pessoas sobre os incidentes. Os hologramas das pessoas mostrando como fora horrível ver o homem ferver e como ficou quente de repente e rumores sobre o apocalipse. Enfim. Tudo na imprensa havia se convertido em discussões sobre o ocorrido. Obviamente se negara a dar entrevistas porque não se sentia bem com câmeras e menos ainda com a reprodução - dizem que você sempre parece ter engordado quando te reproduzem em holograma. Riu daquilo tudo como se não houvesse acontecido consigo ou como se fosse um sonho distante ou talvez só um pensamento daqueles mais fantasiosos. Só acreditava mesmo que fora algo real porque estava voltando pra casa sem as passagens. Falou pouco durante o jantar e foi dormir mais cedo que de costume.
- Cê precisa ver isso! - acordou sem entender direito o que estava acontecendo.
- Quê?
- Lembra do cara que pegou fogo?
Queria não lembrar.
- Que que tem?
- Tá acontecendo na cidade toda?
- O cara?
- Não, bocó! Pessoas pegando fogo do nada. O calor aumentando e tudo mais, igualzinho você me contou. Na cidade in-tei-ra!
Esfregou os olhos pra girar as manivelas cerebrais e ter certeza que tinha entendido direito.
- Como assim?
- Aquilo que aconteceu ontem com o cara do terminal tá acontecendo pela cidade inteira e ninguém sabe o que é.
Sentou na cama e olhou pela janela. Tudo parecia em ordem.
- Como cê sabe?
- Vi hoje de manhã no jornal, olha só.
Foi até a sala e trouxe a cápsula do jornal do dia. Executou os comandos de sempre para ativar a projeção e correu os dedos até o tópico de notícias que lhes interessava.
- Tá vendo aqui?
- Uhnm...
- Tive um pouco de medo por nós dois. Acho que hoje vou em outro terminal comprar passagens.
- Pode ser...
Voltou a deitar. Acreditou ter cochilado porque fechou os olhos e só os abriu quando sentiu um beijo no rosto.
- Vou acabar me atrasando hoje. Escuta, vamos sair hoje a noite, tá?
- Pra onde?
- A gente decide na hora.
Riu. Era sempre assim. Fez que sim com a cabeça e deixou-se estar na cama. Ouviu a porta bater e pensou em dormir mais um pouco. Sentia cansaço em todas as partes, sem motivo aparente. Talvez estivesse adoecendo. Em todo caso, precisava sair.
Aprontou-se rápido. Não sentia fome, então deixou o café da manhã de lado - por preguiça de preparar.
As coisas pareciam normais na rua. "Esses jornalistas exageram qualquer merda.", pensava, enquanto atravessava a galeria principal. Deteve-se um pouco em frente aos painéis de horários de ônibus e trens. Teria que ir ao terceiro centro, que não era muito longe, para assinar os documentos acerca de direitos autorais. Acharia melhor assinar de casa, mas exigiam a presença física de todos os autores e fotógrafos. Bobagem.
Passou boa parte do dia perambulando pela cidade, aproveitando as recém-chegadas férias. Tentou pensar em algum lugar pra ir à noite, mas ficou com preguiça de desenvolver um raciocínio acerca disso, sabendo que iriam acabar em qualquer lugar que estava bom, estavam juntos.
Andava pela parte mais exposta de um bairro de livrarias eletrônicas, olhava pra cima quando um oficial de limpeza gritou para que não esbarrasse na faixa de perímetro elétrica. Escapou por pouco. A cena remontava o dia de ontem em sua cabeça: era um corpo meio esturricado, meio gosmento e parecia ser tão grande quanto o do grandalhão do outro dia. Evitou perguntas, sabia o que tinha acontecido. Limitou-se a pedir desculpas pela falta de atenção e saiu andando. O estômago embrulhado, a garganta fechada e os olhos ardendo. Não muito longe dali a visão se repetia, mas agora se via diante de uma fileira de coisas disformes e gosmentas dentro do perímetro de segurança. Sentiu ânsia. Tremia. Chegou com dificuldade à galeria e se passaram dois mil anos nos cinco minutos que teve que esperar para o trem chegar para que pudesse ir para casa. Assim que se acomodou no interior do trem, segurou com força o comunicador e precisava ligar e amor, tá tudo bem com você? Volta pra casa logo ou só oi, amor, só queria ter certeza que cê tá bem. Provavelmente escutaria risadas e você tá mesmo achando que eu vou pegar fogo? E queria ouvir essas risadas prováveis.
Dito e feito.
Alívio momentâneo.
Chegou em casa como se tivesse passado meses fora. Ainda não tinha ninguém lá. Estava só. O sol já se punha, ainda bem.
Vinte minutos.
A maçaneta gira. Abraçam-se.
- Ei, calma que eu tô aqui.
- Vi muito corpos hoje, acho que vou tomar alguma coisa pra enjôo.
- Eu pego pra você, vai. Se deita um pouco.
- Ainda vamos sair?
- Espera você melhorar e a gente vê.
- Uhnm...
- Que foi?
Deu de ombros.
- Acho que só cansaço. Andei muito hoje.
- Assinou os papéis?
- Sim. Odeio essa...
- Essa merda dessa burocracia. Já sei.
Riram.
- Mas se cê quer saber... eu senti muito medo, também. Uma unidade flutuante pegou fogo hoje.
- Evitei passar perto de unidades televisivas ou de informação. O mundo tava com medo hoje.
- Quer saber, Acho melhor a gente nem sair.
- Também acho.
- Ei...
- Hã...
- Esqueci as passagens.
- Não tem problema, a gente vê isso amanhã.
Dormiram tarde, mas ficaram muito tempo em silêncio, esperando o sono chegar. Tudo parecia acabar e todos pareciam se dar conta disso. Não queriam ver noticiários, ter acesso aos jornais ou coisa nenhuma. Não queriam saber o que estava acontecendo.
- Acorda, vai... porque cê dorme tão pesado?
- Não durmo, não...
- Eu tô com medo.
Sentiu que a voz que lhe falavra tremia.
- Ei, o que foi?
- Tá tudo pegando fogo lá fora.
E estava. A cidade toda parecia estar em chamas. Ônibus e trens flutuavam chamuscando. As unidades de contato queimavam contra o chão. Tudo aquilo em dois dias.
- Vamos sair daqui hoje. Se não for pra Hagal, pode ser outra estação em Saturno, mas vamos.
Levantou-se. Sentiu-se febril.
Risadas.
Um conjunto de gargantas ria, movendo todos os tentáculos e junto com eles as galáxias penduradas na barba ainda infantil.
- Tem que ser mais pra esquerda! Parece que não enxerga, né? E você ainda tem um par de olhos a mais!
Isso quem dizia era um outro conjunto de gargantas - que não eram bem gargantas e as palavras não eram exatamente ditas.
Os tentáculos que pertenciam ao primeiro conjunto de gargantas se abriam se esticavam e as ventosas expeliam aquela coisa transparente. Um dos tentáculos deslizava e se contorcia assumindo a forma e a posição de uma lupa e a qualquer-coisa transparente se enrijecia. Aprontavam a mira para aquela estrela milhões de vezes maior que o Sol. Viam os seres correndo do feixe de luz que se formava, viam aquelas coisinhas queimando, estalando. E continuavam rindo. Eram criaturinhas fascinantes. Não sabiam se organizar muito bem, mas desenvolveram mecanismos razoavelmente avançados para se locomover e trabalhar. Era meio impressionante, pra bichinhos tão pequenos.
Continuavam rindo.
Um terceiro conjunto de gargantas começava a brigar, a uma distância razoável, com as outras duas que pareceram se aborrecer.
Enfim, largaram a brincadeira.
Era hora do jantar.

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