Saturday 15 January 2011

À Dona Diná.

Desde o berço até os pequenos passos idosos no parque, carregava a alma em si. Coisa muito difícil de fazer, já que a maioria dos seres humanos prefere trocá-la por qualquer coisinha mais leve ou guardá-la em uma caixa que acaba por ser esquecida pelo relógio. E carregava-a orgulhosa, vestida com retalhos de outras, ricamente enfeitada com os valores próprios em vermelho e azul. Brilhantes? Sim, refletiam nos lábios, nos dentes desgastados de sorriso sincero.
Por fora, o corpo sustentava os oitenta anos com graciosidade. O corpinho pequeno e grisalho sorria todo e aqueles olhinhos ávidos contornados pelas rugas que o tempo fazia questão de entalhar no rostinho miúdo. Rostinho o qual exprimia uma experiência respeitosa, um ar até autoritário, porém benevolente. Era, até então, a soberana do parque, sentada em seu banquinho de madeira.
Tinha uma preferência incontida por poesias. Mais incontida ainda quando se tratava de Quintana. Os dedos ágeis vasculhavam com habilidade as páginas dos exemplares surrados dos diversos pedaços do poeta, os olhos gravavam na memória os versos favoritos. Recitava, então, com a voz mansa, para o menino curioso que espreitava por trás dos óculos que usava. Amizade inusitada, a deles. Iniciada assim, num banco de madeira, o solene trono da Senhorinha, entre versos e peças de xadrez. Ah, não mencionei? Ela era exímia jogadora da tal modalidade. Há quem diga que ela aprendeu com os Reis as melhores técnicas, as jogadas mais complexas, ou com os templários que erguiam tabuleiros para bolar estratégias... Oh, espere, ela só tem oitenta anos. É que eu sempre confundo a idade do corpo com a idade da alma, sabe? Essa que dá pra ver nos olhos. Voltemos ao xadrez e ao garoto. Ela fez questão de ensiná-lo cada uma das chaves de raciocínio que sabia e mostrar, ainda por cima, a chave do universo interior, que o menino não sabia mais como abrir. Ou talvez ele só tivesse perdido a dele e ela o ajudou a encontrar. E o pequeno – cujo tamanho já passava há muito o aceitável para a idade – aprendia atônito, em deleite com os pensamentos atirados a ele, as filosofias próprias, coloridas de cotidiano que ela espalhava pelo gramado das longas caminhadas que duravam tardes inteiras.
Ele crescia em existência por entre seus quiçás debatidos no calor do xeque-mate. A dita professora conseguia crescer mais ainda, expandir-se em universo e tornando-se majestosa na humildade de seus gestos. Diante daquelas mãos, as pecinhas do tabuleiro faziam-se diamante, flutuavam entre os quadrados alternados do tabuleiro e dançavam. Diante daquela figura o menino aprendia a viver as eras daquelas rugas, os milênios de ser alma. E ele ainda atreveu-se a ler essas linhas para vê-la transbordar.

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