Saturday 10 July 2010

Descompassado.

Vivia em sua inércia. Desfazia-se entre as bitucas de cigarro e as canecas de café. As garrafas de qualquer coisa alcóolica, descansavam, emborcadas ou não, por todos os cantos. Sentia-se sem norte. Ou melhor, o norte estava ali, mas ele não sabia mais como apontar e, muito menos, como chegar até lá. Era uma bússola quebrada.
Ainda lhe restava a máquina de escrever. Jazia ali, ilumada por uma luz leitosa e poeirenta que vinha de uma janela invisível.
Deixava-se arrastar pelo relógio, sem importar-se com os gritos insistentes do telefone. Seu sofá roto era agora seu maior abrigo e era um esforço desumano erguer-se dali para ir até o banheiro sujo, no fim do corredor. Evitava ao máximo aquela caminhada desgastante.
Abria de vez em quando os olhos castanhos. Aqueles olhos, outrora tão sonhadores, tão vivos, fizeram-se cansados e choros, injetados, constantemente avermelhados e de olheiras profundas. Olhava em redor, pousava o olhar demente no toca discos e tinha ali seu momento de pesadelo. A tosse vinha incomodá-lo de vez em quando. Droga, precisava parar de fumar, aquilo poderia acabar matando-o.
O coração já batia em um ritmo estranho, talvez acompanhando o relógio. As vezes os milésimos, as vezes os segundos, minutos ou horas. Batia como lhe convinha. Ele não se importava em passar mal pelas brincadeiras do tal miocárdio. Sentia nelas, algo para distrair-se.
Certa noite de calor, acordou sobressaltado, com o suor a inundar-lhe a face, a grudar-lhe as roupas sobre o corpo. Pôs-se a escrever. A boca seca, aberta, balbuciava frases soltas de forma febril. O rosto pálido parecia mais doente, quase morto. As pupilas dilatadas nos olhos inflamados passeavam pela folha branca. A máquina de escrever, sem saber o que acontecia, cantarolava, feliz em sentir a força sendo novamente aplicada sobre suas teclas. Uma carta. Sim, ele redigiu cada letra com o ardor, a paixão e a urgência que tinha em tempos idos. As mesmas emoções dedicadas há muito à destinatária.
E foi como esvair-se de todo resquício dela que ainda restasse. Queimou o papel, queimou junto as lembranças. Coitado do pobre toca discos, uma queda de doze andares deve ter machucado. E quando a fogueira bendita, no meio da sala, decidiu extinguir-se, ele dormiu. Mal o novo Sol raiou, os olhos se abriram. Voltou a viver. Sentia o coração palpitando mais regular, acompanhando-o, obedecendo-o. Manteve apenas o hábito de fumar, o que lhe rendia tosses. Trabalhava, voltara a atender as ligações e assumira os negócios de vez. Não lhe sobrava tempo.
Fatídico dia em que caminhava apressado, com seu café ainda na mão quando, de relance, viu aquele rosto e aqueles cabelos ruivos de fogo. Até mesmo o brincalhão do coração não soube como reagir, perdeu o ritmo, desaprendeu a bater. As pernas deixaram de andar. Um impacto. O café se esparrama pelo asfalto. E mais alguns segundos, só. O coração parou. Sempre soube que é muito perigoso atravessar a rua sem atenção.

2 comments:

  1. eu vi esse crescer :') uahauhua qq eu posso dizer? profissional! hauhaua

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