Wednesday 2 July 2014

Soma

Eu senti gosto de acerola na boca recém-vermelha dele. Resultado das frutas colhidas antes que outros bichos invadissem o tão bem cuidado pé favorito do quintal da casa. Ele ainda tem esse mesmo cheiro de frio na barriga no começo do dia - que pra mim nunca foi exatamente de manhã - e acerolas. Nunca entrou muito bem na minha cabeça esse quintal todo cheio de mudas de temperos e pés de umas frutinhas de infância no meio de São Paulo.
Do mesmo jeito que eu, a casa toda destoava da cidade. E é porque eu não conheço os cantos certos de Sampa, como ele dizia. Do mesmo jeito que não conheço os cantos certos de mim. De novo, ele me levou praquele bairro de prédios desafogados do cinza asmático dos arranha-céus. Dava pra notar desenhos nas nuvens mas eu preferia o gosto fresco da boca dele desenhando tons invisíveis sobre a minha, coreografando as mesmas constelações que o sol escondia.
No fim da tarde, ele queima. Queima com os lábios carimbados em mim e a voz escondida no meu ouvido jogada em sinfonias quase silenciosas de pequenos desejos sem tamanho. Se coubessem todos na palma de uma mão, não precisaríamos nunca voltar pra casa com a pressa colorida de quem tem a coluna atormentada por arrepios. No começo da noite, ele queima. E o começo da noite pode ser a madrugada inteira e o final dela amarrado no começo daquele mesmo sol que esconde as estrelas. As mãos quentes conversam com os dedos entre as minhas pernas e os lábios dele e os meus dentes e as minhas mãos também quentes. Nós não precisamos de sol na nossa vontade laranja de consumir o calor das nossas próprias mãos e dos corpos desregrados, das línguas passeantes e dos gostos favoritos nas pontas dos dedos. E até derreter, nós não precisamos de sol.
Fora do tempo, ele queima.

2 comments:

  1. Céus, que lindo. Faz tempo que não leio alto tão bonito, doce, quase senti o gosto dessas frutas cósmicas quentes.

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  2. Lendo esse texto, senti saudade de estar apaixonada.

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