Thursday 7 February 2013

Círculos Cromáticos


Meus post-its estão acabando de novo, mas eu não irei acordá-lo pra irmos comprar mais porque sei que ele demorou a pegar no sono. Ele sempre demora demais pra dormir quando os olhos ficam opacos, quase como se o lado de dentro tivesse apagado a luz e alguma parte dele tivesse medo do escuro. Dói em mim quando isso acontece porque moram pulsares no fundo dos olhos escuros e quando eu não consigo vê-los, a companhia elétrica corta a luz dentro de umas partes de mim. Muita coisa na gente era assim, aliás. Como um conjunto de peças, como uma caixinha de música e se algo para, a música sai errado ou a bailarina não dança. É assim: se fica escuro pra ele, falta luz em mim também. Nós dois sempre fomos meio quebrados, mas, como ele dizia, eu era o motor e ele as engrenagens e desse jeito as coisas ficavam menos tortas e tudo parecia funcionar de um jeito simples demais pra explicar pros outros.
Sempre que acordo no meio da madrugada, é pra escrever bilhetinhos pra ele não esquecer de ligar o interruptor e o projetor super 8 que carrega por trás dos olhos por trás dos óculos, mas como minhas notinhas estão acabando, vou ter que escrever nele ou em mim, pra ele lembrar. Ou então no espelho, com algum batom (se bem que o único batom que tem em casa é o que a gente usa pra fazer maquiagens de Crimson Ghost ou de Eric Draven e eu não queria estragar). Ou posso esperá-lo acordar... Mas não vou aguentar, então eu escrevo os poucos bilhetinhos que faltam, falando do café da manhã e também da minha indisposição com o laranja naquela dia - que eu espero que mude a tarde pra conseguir terminar de pintar alguma coisa que eu ainda não comecei - e caminho de volta pro quarto tentando não derrubar nada pra não acordar os cachorros. O Ernesto, nosso gato, sempre sabe quando eu acordo e me acena com a cauda um pouquinho antes d'eu chegar onde quero. Fecho a porta do quarto devagar e tomo cuidado pra não pisar em nenhum dos sorrisos espalhados pelo chão.
Ele carrega constelações inteiras nos pulmões e enquanto respira, consigo imaginá-las todas. As minhas, carrego nas pontas dos dedos e sei que não fazem cócegas nele, a não ser quando elas decidem morar nos meus lábios. Ele dorme meio encolhido, acho que doeu depois que eu saí, mas não acordou. E mesmo que tenha se encolhido, ainda tem o meu lugar ali na cama, ali, tão simetricamente ajustado ao lugar dele e eu sei exatamente como deitar. Meus esforços para fazê-lo sem provocar um semi-despertar dele são inúteis, mas não me alarmo - ele não vai acordar, só quase. É só pra gente se ajeitar de novo, mesmo que não precise. O nariz dele encosta no meu pescoço e eu arrepio uma vez e de novo quando suas mãos passam pela minha cintura pra me abraçar. Ele se esconde em mim e eu nele e o mundo funciona todo como deveria. Torto, como nós dois e nosso como a gente.
De vez em quando, quando ele acorda sozinho, se machuca de dentro pra fora, talvez porque quando a luz apaga dentro dos olhos, ele saia esbarrando em si mesmo e isso faz o ar faltar e o suor correr frio do lado de fora. Meu coração sempre samba errado quando isso acontece e eu tiro a camisa - normalmente uma das que são dele - e encosto a barriga e os seios em suas costas, pra arrumar os nossos ritmos. Devagar, as coisas respiram de novo e ele se acalma. Dessa vez, me pergunta se eu havia conseguido mexer nos meus pincéis e eu digo que o laranja estava de mal comigo, ou o contrário e que eu tinha escutado uma música mais cedo que falava sobre o Van Gogh. Perguntei a ele se sabia se o Vincent gostava de laranja. Ele diz que devia gostar e que eu devia experimentar torta de abóboras. Eu digo que sei fazer e que faria uma pra ele, mais gostosa do que todas as que ele havia comido (eu teria que arrumar alguma receita na internet, uma hora dessas).
É. Talvez laranja não fosse tão ruim. Talvez eu desenhasse algo mais tarde, mas me aborrecia a idéia de levantar da cama justo quando as pontas dos meus dedos desenham alguma coisa nas costas das mãos dele. Gosto de quando a gente pinta os segredos com letras que ninguém lê nas costas das mãos. Ninguém além de mim, depois que sorrio com os lábios dele. E ele tem mãos bonitas e um bocado maiores que as minhas, que parecem de criança. Cheias de calos, as mãos dele tocam tudo de um jeito diferente e eu gosto de tê-las para mim. De andar de mãos tão dadas que elas se derretem uma na outra. Acho que foi por isso que o Ernesto escolheu a gente pra ser o casal adotivo dele. Sim, porque o Ernesto é o gato mais cinza de nome mais cinza ainda que se tem notícia e ele não aceitaria ser adotado, então adotou a nós dois, porque gostava do jeito que meus anéis e os calos nas mãos dele pareciam se completar por entre os encaixes dos nossos dedos. O Ernesto tem um lado meloso.
Gosto de misturar temperos quando eu cozinho, mas não lembro nunca os nomes deles direito. Lembro mais pelo cheiro, o que fica bom com o que. Misturar cheiros é bom, também e às vezes mais fácil que misturar cores. Eu gosto de mesclar o cheiro dele no meu pra gente ficar impresso nos travesseiros, ou, quando ele tem medo, pincelar beijos de leve pelo seu corpo, com tinta feita de uma mistura só minha de saliva e sussurro, pra criar incensos que o acalmam. É uma alquimia, mas é segredo nosso. Tenho uma maletinha de incensos na cabeça, todos bem anotados, outros nem tanto, mas aí eu improviso ingredientes. 
Talvez amanhã eu acorde gostando de laranja, porque em um certo ponto, um bem certinho pendurado no relógio que não existe, o vermelho e o amarelo se escondem tão bem um no outro que o laranja aparece feito um cobertor pra esconder a fuga das duas outras cores. Talvez eu goste de laranja agora, porque me lembra a gente e porque eu vou fazer torta de abóbora pro almoço.
Seus olhos agora parecem tão acesos que só consigo sorrir com todas as estrelas que tenho pra ele e pro laranja-torta-de-abóbora em sua boca. É bom vê-lo respirar calmo, tão mais ameno do que quando se afoga. Eu tenho falta de ar de vez quando, a sensação de mergulhar é estranha. Uma vez, lendo o Jogo da Amarelinha pela milésima vez, eu sorri dos rios metafísicos que o Cortázar colocava ali, pro Oliveira se afogar. Afogamentos. É como se nós nos salvássemos constantemente de afogamentos, estando mergulhados um no outro. Marquei essa passagem duas vezes e sorri porque eu às vezes me via na Maga. A Maga era meio cheia de ângulos demais. Mas eu gosto disso. E gosto de rios metafísicos. Acho que eu conseguiria mergulhar neles sem ficar com falta de ar e até mergulhar mais fundo que ele. Ou então, ele me deixaria ganhar, porque no fim, não fazia muita diferença. Mergulhar em si mesmo era mais apavorante sozinho e eu achava engraçado competir, não que eu fosse boa naquilo. Há sempre um ponto em que a gente se perde no mergulho, mas alguma hora tudo torna a fazer sentido e outra hora a gente emerge - eu não sei explicar essas coisas, também. E voltamos bem na hora em que o vermelho e o amarelo se juntam numa linha meio de aquarela borrada de azuis e de lábios. Tudo fica laranja e Monet reclama que a gente está trocando beijos bem na frente do que ele quer pintar.
De vez em quando ele funcionava com extremos, porque gostava de mergulhar, mas ficava horas olhando o fogo, como se uma hora fosse confundí-lo com a água e fosse tentar praticar apnéia em línguas inflamadas. Ir fundo no fogo, será que tinha como? Pergunta boba.
Digo a ele que um amigo meu, que é poeta, diz que as cores são roupas da luz e que se eu me importasse com roupas, invejaria a luz por conseguir se vestir tão bem. O sorriso pós-torta-de-abóbora dele me dá ainda mais certeza de que eu gosto de laranja hoje. Me diz que ainda bem que eu não me importo com roupas, porque eu fico mais bonita nas dele, de todo jeito.
Não dá vontade de sair dos nossos anacronismos mas essa é a hora d'eu ir me encontrar com pessoas de açúcar - que não pegam chuva pra tinta não escorrer e borrar a maquiagem - que me cansam - e implorar pro Dalí ou o Escher me tirarem do tempo. 
Mas é bem rápido, digo a ele com vontade de deixar o corpo em casa, junto com o resto que nem sai de lá. Nunca é bem rápido, mas a gente tenta se convencer.
Droga, engarrafamento. Cadê a minha bombinha pra asma?
Ele vai ter falta de ar. E meus pulmões já doem. E fica tudo escuro em mim e agora tem os braços dele apertando o que resta dos meus pedaços pra eu não sumir e tudo o que eu consigo dizer antes de dormir são uns pedidos pra que ele não vá embora. "Mas eu moro aqui", ele diz e eu consigo respirar. Mesmo que eu fizesse tudo errado, mesmo que eu ficasse mais quebrada do que ele, eu ainda ia conseguir respirar todas as vezes que ele me beijava os olhos. Laranja agora, queima e não é um calor suave, calor de dois corpos juntos ou um calor de cidade litorânea. É um calor distante dessa cidade seca. 
Laranja com gosto de cinza, descendo pela garganta com força, empurrando as paredes do esôfago e fazendo sangrar. 

Desfaço o devaneio rápido - eu sempre tive esse mal de ser meio distraída. Tinham umas placas na rua e vento fazendo barulho nos ouvidos. Uma mãozinha estende um giz de cera laranja me dizendo alguma coisinha com os olhos. Quer uma história e um desenho. Quer saber uma cor favorita. Outro desenho. Não, hoje não é laranja.

1 comment:

  1. Agora, que já se vão mais de três quartos do dia, me afogo em teus devaneios tortos. Estou me recuperando ainda. Fiquei sem fôlego.

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