Tuesday 18 September 2012

Sobre manter as mãos limpas durante as filmagens

Estávamos ali em uma ordem pouco organizada, porém cheia de detalhes. Éramos os travesseiros, as sempre desarrumadas cobertas, dois corpos, os filmes e a alteração de lugar frequente de tudo. Além disso, havia sorrisos espalhados pelo chão do quarto e pela cama e faziam cócegas. Poucas horas antes eu também diria que havia um disco de vinil do The Doors (que era algo que eu gostava, embora ele achasse o som péssimo e preferisse os Cd's ou o arquivo digital) e um segredo que só ele sabe perambulando pelo quarto.
Uma das minhas cenas favoritas do comecinho d'Os Incompreendidos foi interrompida pelo som dolorido da porta que era arranhada pelo cachorro que fez questão de começar a chorar porque sabe que eu morro de pena. E ele levanta da cama e deixa o cachorro entrar enquanto eu reclamo com os olhos porque ele saiu do lugar para fazê-lo aquietar-se. Mas ele não tarda a fechar a porta e voltar pra cama. As borboletas nos meus pulmões vibravam (sim, nos pulmões, por isso eu suspirava) e eu me confundia quando tentava lembrar se eram elas ou eu quem tinha asas.
Meus olhos sempre se fechavam ao encontrar os beijos dele sobre minha pele. Ele sempre voltava com beijos. Ao abrir de novo os olhos e achar o sorriso dele perto do meu, perguntei se ele havia lavado as mãos e ele torna a sair da cama, dessa vez com o sorriso no canto dos lábios e as mãos erguidas. Anda de costas em direção ao banheiro e eu me encolho entre os travesseiros. Quando volta, eu sei que olha novamente para a camisa favorita dele no meu corpo e eu sorrio só por saber que posso usá-la.
Ajeitamo-nos aninhados como sempre para acabar o filme e eu, não sei como, adormeci (de vez em quando, ele fingia dormir durante filmes e eu o acordava com beijinhos de esquimó). Quando acordei, disse a ele que estava com sede, esperando que ele tivesse lido um dos muitos bilhetinhos que eu deixo sempre pela casa, lembrando que ele deveria comprar água.
Insisto que ele pode ir comprar pela manhã, que não precisava ir àquela hora, mas ele diz que quer ir comprar e eu bem conheço aqueles olhos por trás dos óculos me dizendo que ele vai de qualquer jeito, então era melhor dizer logo o lugar onde ele deveria ir. Eu continuei relutando para que ele não fosse, mas lá se foi ele com os cabelos desarrumados pelas minhas mãos inquietas e o nariz ainda meio colado no meu, vestindo uma outra camisa que estava jogada no chão. Ouço o cachorro acompanhá-lo da sala e levanto da cama assim que escuto a porta fechar. Debruçar-me pela janela pra observar os seus passos distraídos... eu gostava de fazer isso. O cachorro o acompanhava de perto e mesmo que fosse meu, certamente gostava mais dele. E acredito que Ernesto, o meu gato, também goste mais dele do que de mim. Minha sede passa ou vira saudade imediata, não sei bem. Só me esqueço dela.
Sempre me confundo com tempos verbais, ele sabe disso. É que é como um filme, tudo. Um filme de Cinema Moderno, sem linearidade, sem heróis, sem aqueles conflitos cheios de armas e ferimentos e um cara que do nada se transforma em um Bruce Willis pra salvar o mundo. Não sobrava muito de importante do mundo além dos poucos metros quadrados e uns litros de água, aliás. Era tudo o que eu precisava salvar e eu sempre senti que talvez pra isso, meu interior fosse um herói de ação.
É fácil rir com essa idéia. Na verdade, eu sempre rio de tudo e ele ri porque eu sempre rio de tudo. E rindo, eu pego um bocadinho de post-its amarelos para escrever mais bilhetes pra quando ele voltar. Como eles estão acabando, peço em uma das notas, pra ele comprar mais alguns e faço desenhos e um bilhete com sorrisos bobos porque ele não precisava ter ido comprar água.
É um filme moderno e muito bem musicado. E que bonitas que ficam as coisas corriqueiras quando um diretor sabe aproveitar bem os planos e os cortes e os diálogos que não acrescentam nada a narrativa, mas mil pontos de interrogação na cabeça de quem está assistindo.
Interrogações ou reticências.
Espalhei três pontos pela casa e fui esperá-lo do lado de fora (como a minha noção de tempo sempre se afeta pelos cortes eu nunca sei se passaram dois minutos ou duas horas - mas passam sempre em números pares). Ele chegou com aqueles olhos por trás dos óculos que diziam confusões e se doíam e ele passa com a água e o cachorro. Eu torno a me deitar na cama e espero que ele chegue ao quarto pra encontrar os mesmo sorrisos espalhados e as mesmas borboletas, mas a cena do filme na tevê já não é a mesma.
Ele se desculpa pelo mofo no canto das paredes e eu invento uma história qualquer pra justificá-los. Ele não ouve até o final e vai ao banheiro. Mordo os lábios, pedindo pra ele reparar nos novos bilhetinhos.
E a cena continua num plano-sequência. Ele volta com as mãos erguidas e me beija o corpo e eu fecho os olhos. Quando os nossos sorrisos estão bem próximos, eu pergunto se ele lavou as mãos.

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