Tuesday 14 July 2015

Jaime, o menino está com sede

Porto Alegre no inverno açoita quem tá acostumado a chamar de frio qualquer temperatura abaixo de vinte e sete graus. Todo o hype da gastronomia molecular fazia a gente se sentir como numa distopia - como os ricos da distopia, com dinheiro pra comprar bolinhas coloridas pra comer e, no nosso caso especialmente aquela noite, pra beber. Ratos de boteco como somos, não dava pra se encaixar muito bem num ambiente onde tudo era vintage arrumadinho e como não tinha uma "mesa de sempre" pra gente sentar, deixamos o destino escolher por nós: a primeira que ficasse vaga, seria nossa.
- Porque a gente tá aqui mesmo? - Henrique dizia isso enquanto fazia uma varredura visual de 360° no local - Isso aqui tá mais arrumado que aqueles restaurante vegan.
Eu dei uma gargalhada indiscreta, pra variar. Sempre achei curioso eu estar entre as amizades do Henrique, sendo que falo alto e muito, rio alto e muito. Fazer o que, dei de ombros.
- A gente ganhou jantar de graça, né. Há sempre tempo de desistir, em todo caso.
- Vamo embora daqui, porra.
Alguma gargalhada ao fundo parece responder a gente. Vamos então, mais fácil do que ficar perambulando num ambiente não muito receptivo pra quem não é muito a favor das configurações contemporâneas de desenvoltura social.
Ali pela Lima, tem o Rossi (aprendi o caminho só depois da terceira ida pra Porto Alegre) e provavelmente foi o bar que mais frequentei, então tomava como meu, numa cidade que não era minha. Os pés rumaram pra lá. No frio, tudo o que dava pra desejar era uma cana, mesmo que de passar. No caminho, a gente jogava metros de conversa fiada fora sobre bar e indisposição, como sempre. Reclamar é arte para poucos, embora muitos tentem.
- Bah, tem um bar aqui todo nesses estilo medieval. Vende até hidromel. - Eu ouvi enquanto tentava desajeitadamente atravessar a rua, o que era difícil, mesmo quando estou de mãos dadas à extensão de mim, que andava prestando atenção por nós dois enquanto eu respondia o comentário do Henrique, que andava um pouco mais à frente, proclamado pelo grupo como um guia através de um acordo telepático.
- Sério? Bora lá um dia.
- Bora. Acho que o nome é "Taverna".
- Uh. Imprevisivelmente criativo.
Mais risadas. Dessa vez são duas, uma de cada um dos meus lados. Me sinto uma comediante sagaz por alguns segundos.
Henrique lembrou que deveria comer e que no bar não haveria comida. Cachorro quente na rua, claro, sem bobagens de foodtruck porque não teria condições de você pagar quinze reais em ervilhas importadas tendo um comprometimento etílico para logo mais. A barriga cheia provavelmente ajudou a memória dele, que informou que passaríamos antes no comitê latino americano. Obviamente olhou pra mim, comunista que sou, sabendo que um bar com esse nome atrairia a minha curiosidade.
Não foi surpresa pra nenhum de nós que eu tenha soltado corações pelos olhos com a decoração do lugar, toda baseada não apenas numa concepção estética do que se diz "latino", mas também mensagens políticas, fotos de ícones revolucionários e cachaça de maçã com canela.
- Lugarzinho lindo. Mas, vamo lá, esse bar tem cara de Movimento Estudantil, tô errada?
- Bah, exatamente, eu sabia que tu ia notar isso! - ótimo ter um gatilho para começar o deboche acerca de políticas da UNE, socialismo com lavanda, os grandes boicotadores da coca-cola e os grandes discursos aos "trabalhadores" cujas frases eram formadas majoritariamente por palavras escolhidas a dedo no dicionário mais academicista e antiquado da estante de inutilizáveis para causas populares. Aqui, acelero o tempo e alguns outros sabores de cana - dentre eles, uma de passas que era surpreendentemente boa - para chegar enfim ao Rossi.
Boteco é um nome bonito na língua de quem perde paciência pra copinhos limpos demais. A essa altura, já éramos quatro reclamadores profissionais sentados em cadeiras de plástico verde, possivelmente propaganda de alguma cerveja, mas não tenho certeza.
Uma dose de uísque com a desculpa de que cairia bem, afinal, estava frio - como se precisasse de desculpas - e mais algumas de cana, com a mesma, também para esquentar, obviamente. A cerveja passava sem justificativa além de, bom, ser cerveja.
As cordas vocais continuavam trabalhando incessantemente:
- Ah, sei lá, Henrique, as pessoas são muito esquisitas. É gente reclamando de rotina, mas fazendo escândalo quando o outro muda. É uma coisa doida, isso daí. Gente não é uma coisa estática e parece que todo mundo quer se ancorar de algum jeito. Ou só ancorar o outro porque fica naquela de "ah, a mudança é a lei da vida", mas na hora do outro mudar, se ressente todo.
- Mas isso daí depende do mapa astral!
- Para de tirar onda, pô!
- A gente tá virando uns velho saudosista de vinte e poucos anos, Anna. A gente fala como se fita cassete fosse a coisa mais sublime do mundo e reclama da gurizada que anda de fone por aí e fica vidrado em celular. Tu me imagina citando aquela música do Belchior? A gente tá acabando que nem nossos véio.
- E nem velho a gente é.
- Mas venhamos e convenhamos, ninguém tá merecendo essa geração Namastê.
- Transcendência, hippie de rave de 300 reais, né?
- Dá vontade de dar um tapa na cara desses moleque "ô meu filho, tu não tá transcendendo, tu só encheu o cu de droga mesmo! Tu né melhor que ninguém porque ouve pink floyd!"
A ordem dos tratores não altera o viaduto e éramos quatro vozes, fica difícil nomear quem dizia o que, mas todos ríamos do embalo de resmungar por resmungar antes dos 70 anos. Claro, haviam momentos de pronunciada jovialidade e trocadilhos ruins, afinal, éramos quatro vinte e poucos anos juntos distribuídos em dois pares, então eram permitidas as pausas para trocar carinhos e dar nó nos dedos. Confortavelmente pretensiosos, talvez, a gente engolia a noite contando piadas e, claro, falando que nossa-temos-que-escrever-mais, mas "Anna, é difícil quando ninguém tem paciência pra ler uma página, botar livro pra rodar" e "Muito motivador, tu".
A gente até sabe que é verdade, mas as coisas ficam mais fáceis de engolir com pitadas de sal e cana, fazendo a gente acreditar vai que cola, né, uma publicação maior. Vamos ver, a gente tem futuro ainda.
Laila tinha lindos cabelos vermelhos e enormes. Pulei detalhes, mas não poderia esquecer de mencionar Laila e seus cabelos lindos e enormes especialmente porque antes de conhecê-la, me confundia o tempo inteiro com o nome que eu não tinha certeza ser Lília ou Laila. E fomos pra casa dela depois de virem expulsar a gente porque, meus queridos é plena terça-feira e vocês ainda estão aqui, quase duas da manhã, eu tenho que fechar meu bar. Tudo bem, tudo bem, ainda teríamos uma garrafa de ypióca esperando em um lugar mais quente que aquele e no caminho, alguém teve a grande idéia de comprar bergamotas - no meu vocabulário, tangerina - porque bergamotas mergulhadas na cachaça é sensacional e eu não tinha experimentado até então, mas a vida é sobre correr riscos, não é mesmo?
Daí pro fim do relógio da madrugada a existência foi longamente destrinchada em discursos que puxavam aleatoriedades, ficou igualzinha aos gomos de bergamota mal amassados no fundo de um copo. Os vizinhos reclamaram do barulho que não estávamos fazendo e Henrique e eu despejamos carinho e álcool nos nossos respectivos pares. No final, só uns bagacinhos encharcados que eu terminava de engolir, porque desperdiçar é pecado.
Ninguém estava tão bêbado quanto Henrique que, montando painéis de colagem na cabeça, decidiu que abriríamos um bar chamado AVC, já que um de nós tinha experiência como barman, e se instalaria em Pernambuco - Olinda, especificamente.- Eu tomei o último gole de ypióca. Acabaram as bergamotas. Ninguém fica bonito tomando o ultimo gole de nada.
Não lembro bem o caminho de volta que fiz até o hotel. Também não lembro de apertar o botão certo do elevador. Não me lembro de acordar em Porto Alegre no outro dia e o choque de temperatura de um corpo que esperava o calor de Recife aumentou consideravelmente a ressaca. Sim, ressaca é pouco, o que sentíamos ainda não tem nome, como diria Clarice.


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