Thursday 26 March 2015

Post nubila

Eu acordava com o estômago revirado em dias ambíguos e somente neles. Em dias que o céu está nublado-mas-não-muito, em que a resposta ao gesto é sutil demais para que se note, dias onde as nuvens só chovem pela metade e, obviamente, nos dias em que não se acorda completamente - os tão conhecidos dias de ressaca, ou de começo de gripe. Hoje sinto como se a náusea constante fosse talvez o resultado do planeta estar aí, boiando em coisa nenhuma, girando no mesmo lugar preso por cordas invisíveis num móbile universal. É como estar em um cruzeiro - não que eu já tenha ido para algum, mas dizem que se enjoa como o diabo. É, hoje em dia a náusea é constante. Talvez, por alguma razão, meu estômago - casa da alma, segundo uns caras que escreveram umas coisas - tenha interpretado os últimos tempos como aglomerados constantes de dias ambíguos e meus olhos ainda estão meio marejados pra perceber alguma mudança significativa no quadro geral da normalidade cotidiana. Além do mais, eu carrego num total, oito graus e uns quebrados de miopia. E tem ainda a grande complicação de querer sempre enxergar para além do que se pode simplesmente enxergar. Seria melhor ter os olhos no estômago - casa da alma, sabe como é.
Imagino que uma hora dessas eu desenvolva algum tipo de úlcera emocional. Existem esses diagnósticos por estresse e toda sorte de coisa que transforma a bile numa tempestade contra as paredes da gente mesmo e tem ali, qualquer coisa boiando como um barquinho vendo um buraco negro de bordas doloridas se formando aos pouquinhos. Uma caverna purulenta cheia de medo e desconforto. E lá está o barquinho, boiando ainda, sendo arrastado para lá e para cá, tão pequenininho quanto a menor dobradura de papel possível para o momento. E lá dentro, numa cabine de capitão preguiçoso, estou eu de verdade e a minha alma dentro de mim.
Essa é outra possibilidade para explicar o mal estar. Nunca fui de enjoar ao andar de barco, mas também nunca passei muito tempo em um e dizem que grandes percursos enjoam como o diabo.
Os meus ossos andaram reclamando que vem chegando uma idade em que tem que se importar com eles. Aos quase 65, dá pra ver que era verdade, mas só dá pra ver porque sinto meus órgãos todos sacolejando de vez em quando, como se a carcaça não aguentasse mais. E eu nem sou lá uma criatura muito velha, não. 65 é começo da aposentadoria de muita gente por aí. Uma pena que ainda não tive essa sorte.
Não que eu não ame o exercício da medicina, não. É só que toda essa merda cansa. Fica difícil costurar tripas alheias quando você não tem mais a coordenação que tinha aos trinta e nem se esforçou pra manter um mínimo de sanidade ou equilíbrio durante a vida. Mas é sempre mais do mesmo, se cuidar porque ia chegar isso que há anos eu chamava de futuro e eu nunca prestei muita atenção nele até a hora que eu dei com a fuça nos portões da pomposa velhice - que não é nada demais, também, é só mais um pedaço da vida. Aquele velho que eu conheci semana passada falou alguma coisa assim, mas era mais do mesmo também, daqueles caras que dizem coisas sem sentido nenhum porque droga nenhuma faz sentido na vida deles - não que faça na minha, mas... dou de ombros.
É bastante babaca esse sentimento que me corrói todas as vezes que lembro que já arrisquei uma penca de vidas com as minhas decisões médicas que ora salvaram, ora não puderam resolver muito, mas que aqui, pro meu próprio nariz eu nunca soube fazer muita coisa, fosse pra morrer, fosse pra salvar. Eu corri junto com a maré e enjoei, eu esqueci que tem que fazer um leme também na porra do barco.
Eu esqueci de muito coisa. Esqueci que não dá pra se fazer uma auto-cirurgia quando é um processo complicado, que mexe com o estômago, esqueci que sangue ainda tem o mesmo gosto de ferro, que eu ainda não aprendi a não botar as mãos no fogo e que não há nada de novo sob o sol.

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