Wednesday 25 April 2012

Relato Orgásmico

Acho incrivelmente indigno que chamem atualmente os cabarés e bordéis de uma forma tão vulgar: "Puteiro". Ah, essas letras juntas soam mais como cuspe na calçada do que como um lugar de idolatria-corporal-feminina-em-prol-do-bem-estar-masculino. Mas vá lá, vá lá que a qualidade dos estabelecimentos não está muito à altura de dizerem-se Cabarés. Ou talvez seja a minha imaginação fílmica falando mais alto que os fatos e eu leve demais em consideração as minhas visões burlescas. Se for o caso, como um bom sei-lá-o-que-quase-jornalista-meio-poeta-e-com-certeza-bêbado, eu devo me desfazer das minhas visões antigas pra adentrar pelas portas deste prostíbulo aqui nesse fim de começo de mundo sem nome.
Ah, lá está ela, bem como eu imaginei (só que um pouco mais rechonchuda). Encorpada quem nem a mulher russa que deixou Dmitri Karamazóv naquele estado deplorável de se ajoelhar e chorar (chorar!) e todas aquelas coisas que eu nunca consigo imaginar direito.
Pois bem, ela estava lá, isso eu já disse. Não era exatamente gorda, mas era exatamente - e extremamente - velha. Se a também velha poltrona em que ela estava estirada - sentada é muito formal - pudesse falar, certamente nos diria a idade da mulher - que parara de contar aos trinta e cinco (informação confirmada depois de longa conversa, mas que eu prefiro adiantar).
Pensando melhor, se os móveis falassem, eles começariam por tentar soprar o pó de cima das bocas e me revelariam o antigo Cabaré no maior estilo digno de uma apresentação da tão adorada Dita Von. Mas mantinham-se calados, dispensando o trabalho de limparem-se. Dava pra ver as cores que já foram vivas: vermelhos e todos aqueles tons de marrom, uma linha ou outra de dourado que restava daqueles frufrus de puxar-amarrar cortina que eu não sei o nome, o lustre velho, aposentado num canto juntando aranhas - espaço para arrepio de gastura - e os livros, muitos livros, velhos, novos e sempre muito limpos.
A mulher roliça - entenda "roliça" por "cheia-de-curvas-um-pouco-melhor-recheadas-que-a-maioria" do que efetivamente por "gorda" (creio até que a palavra certa é "esbelta") - sabia da minha visita curiosa e me encarava com aqueles olhos que pareciam brilhar de todas as cores ao mesmo tempo - por isso eram tão pretos -  e piscavam junto com a luz que ficava salpicando escuridões feito um corredor de filme de terror ou um letreiro de neon daqueles velhos de motel. Ela, metida naquele corpete verde com os seios enormes saltando pra todos os lados, com a maquiagem derretida pelo calor, me fez sentir o sujeito mais melancólico do mundo, não sei bem porquê. Qualquer coisa me fazia gostar daquele lado moribundo do que um dia, por certo, foi belo. Ajeitou-se no sofá, esperando que eu dissesse algo... Ela deve dormir de maquiagem... O que?
- Ah, - espaço para pigarrear discretamente - boa noite.
Eu acho que ela me olhou de um jeito que dizia pra eu continuar, mas eu não sabia como. Era só uma curiosidade minha observar aquela senhora que parecia uma múmia - não por ser velha (por mais que fosse) ou ressequida (o que definitivamente não era), mas é que me passava uma impressão de coisa embalsamada e cheia de poeira.
Quase achei que seus lábios iam se movimentar, mas ela suspirou, apenas.
- A senhora é... - Ela aquiesceu. - Pois bem... parece que sabe até o que vou perguntar! - E sorriu: sabia. - Serei franco com a senhora (ou prefere que eu diga senhorita?). Eu não entendo porque todo esse misticismo envolvendo... a senhorita.
Ela levantou a voz, finalmente. E eu pude entender porque os móveis naquele puteiro nunca falariam. A voz era tão majestosamente suave e estrondosamente calma e você pode inserir aqui toda essas antíteses, porque mais nenhuma me vem a mente.
- Você, eu bem sei, eu bem sei... Você está aí se perguntando como eu, aqui, toda acabada, consigo dizer que atraí (e atraio!) cada pobre diabo dessa cidade, cada turista que pisa nela e o resto do mundo inteiro, se eu me dispuser a sair daqui. É, meu filho, eu fiz, eu faço. Eu, que sou condenada por isso. E faço porque é aqui nesse peito que tudo quanto é alma tem o que falta. - Ela levantou a voz mais ainda, junto com o corpo que se erguia da cadeira. Era, definitivamente, mais alta do que eu pensava. Gesticulava com força tal que o lugar todo acendeu as luzes pra ela. - Cada menino, jovenzinho, que passava por mim, quase enlouquecia e as mães fazim de tudo pra mantê-los longe. E os homens, também! As filhas, então? Ó, quando as filhas vinham a mim era um estardalhaço. Hoje, nem tanto. Mas há uns vinte, trinta anos? Era uma afronta! E vinham, às vezes, até as mães. Mas eu era e sou vista, por vezes, como a responsável pela loucura dos homens. Diziam que quando eu os envolvo, menino, ficam a dizer asneiras. Mas é estúpido... esse povo chama de asneira toda a verdade que eles tem medo de ouvir, toda verdade que não é a deles. - Exaltada, voltou os olhos que navegavam nas lágrimas pra mim. - Eu já fui muito pisada, muito exaltada. Mas eu sou sempre vista como louca. E eu? Ah, eu amo ser assim. Porque eu sou tudo. Eu, meu filho, sou um pulmão pra alma desses homens, dessas menininhas. E já fui muito proibida pelos moralistas, que, ó, hipócritas, precisam de mim. E esse meu corpo gasto sente isso em cada pelo que ainda arrepia. - Gargalhou, desviou os olhos e voltou à poltrona.
 Eu havia me sentado em algum momento não recordado: Estava apaixonado. Ela, agora me parecia até mais jovem, corada. Os móveis olhavam, era hora de ir-me dali.
É engraçado lembrar-me desse encontro hoje. Eu era novo, convenhamos. Eu também deveria estar corado diante da grandeza daquela mulher, que era enorme em tantos sentidos e que em todos os sentidos me atacava como uma sequência de setas. Ajeitei (leia-se: desatei) a gravata que estava apertando mais o nó das palavras que não iriam sair de jeito nenhum. Sentia-me a cadeira em que estava sentado. Voltei tantas outras vezes - nas quais ela me revelou a idade, os primeiros e os últimos amores, os inúmeros suicídios, as reclamações e o jeito que as flores tinham a mesma cor em cores diferentes. Contou-me de como fora aclamada na rua, de como fora vaiada em teatros municipais em primeiras apresentações do seus novos ares.
Tomei nota em versos.
A propósito, ela se chamava Poesia.

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