Tuesday 7 February 2012

Ranger de dobradiças

Pessoas deveriam parecer paredes e eu descobri isso depois que me revelaram esta mesma frase e seus porquês. Deveriam parecer o cheiro das teclas do piano e a textura da asa da Xícara nos dedos. E por alguma razão, elas eram tudo isso naquela tarde onde não era eu quem meditava durante os quarenta minutos do meu - quase previsível - atraso.
Foi bom ver que dessa vez os olhos passeavam atentos e não se perdiam no tédio como da outra vez - quando teve que escutar as mesmices femininas sobre regras de vestuário. Imaginava-se homem por dentro, às vezes.
O café não esfriava e tampouco terminava. E foi escorrendo assim pela garganta, aos poucos, mas quente até a hora em que finalmente acabou e - quase sincronizadamente - eu cheguei. E vi seus olhos e deveria até trocar a ordem dos parágrafos no texto, mas vou deixar assim.
"As pessoas parecem paredes", você disse. Eu lhe olhei com a minha cara de quem sabe que vai ouvir uma poesia provinda de uma conversa-consigo-mesma que provavelmente ocorrera antes d'eu chegar. Sorri e você deu entrada a série de explicações que entravam em outras explicações, que estalavam no salto da mulher que passava, fazendo aquele tec-tec-tec - que eu sempre achei meio mórbido - no ambiente que pareceu parar pra deixá-la tec-tequear por ali.
Você iniciou a explicação de gesticular tão calmo quanto a fumaça dos cafés alheios que sumiam nas gargantas dos executivos, das senhorinhas discutindo um programinha cultural, - segundo o que você me disse, era a mesa mais interessante - dos homens que (ou)viam a moça de salto ir embora e até no vestido da mãe de um menininho de uns dois anos que não se conformava em ser pequeno demais pra cafés - aqui você atrapalhou um pensamento pra dizer que crianças pareciam com cachorros e quando eu perguntei porque, você disse pr'eu perguntar depois. Falou sobre a estrutura das paredes, riu por estar sob efeito de remédios que - apesar de receitados - tinham um efeito semelhante à qualquer coisa ilegal (sem apologias) e, no fim, soltou aquele suspiro satisfeito: "É que, na verdade, a gente começa como tijolinhos bem colocados, mas vai quebrando, vão colocando umas pedras meio tortas, deixando buracos pra tapar com cimento... por isso a gente acaba parecendo essa parede aí". E o queixo indicou a dita cuja, toda irregular, com reboco aparecendo - truque do designer de interiores pra tornar tudo mais rústico.
O piano recomeçou - eu nem sei se ele havia parado. Eu me desatentei do resto por reconhecer na melodia o som dum filme. Famoso, até. Arrepiei, como de costume e "Ah, o Cinema", claro que com a também costumeira empolgação que eu tenho pro assunto.
Você terminou o café, eu pedi um frapê.
No meio dos nós nada cegos que a nossa conversa dava, tinha um guardanapo, uma caneta-que-a-garçonete-havia-tão-gentilmente-te-emprestado e os rabiscos que a caneta fez no guardanapo. Era um poema que ainda era um feto-de-poema, mas tava poemado. "Ei, tira a mão da boca!", sua voz de reprovação ardeu nas minhas unhas roídas e eu tirei, rindo. A mulher voltou tec-tec-tec com o salto e o namorado - e os homens desviaram o olhar (por uns segundos). Pareciam o casal que você estava observando antes d'eu chegar, só que menos irritados um com o outro. Ele puxou a cadeira, ela sentou e deu uma piscadela... para o homem na outra mesa.
O bebê parou de chorar - há muito, mas eu demorei pra notar - e você pediu a conta (eu já tinha terminado meu frapê). A garçonete, a mesma que tinha emprestado a caneta, a recebeu de volta e ganhou de brinde um sorriso e um "Muito obrigada". Sorriu de volta.
Fomos atrás de livros, depois de galerias, depois de um irlandês num bar no meio de um bairro tradicional de Recife. O nosso terceiro elemento chegou meio atrasado, mas chegou e comprou pipoca com leite condensado que foi motivo de piadas. Os livros voltaram a ser analisados, agora sob o olhar de seis (ou dois?) olhos. Éramos os três quase-poetas porque a gente havia esquecido de levar os cadernos que tanto disseram pra gente não esquecer. Éramos todos poetas porque a gente tinha deixado de anotar versos pra viver poemas inteiros no solavanco dos passos que nem precisavam andar assim no mesmo compasso, que se entendiam fazendo música - que o nosso atrasado elemento adorava imitar com as mãos. Éramos, na verdade, três. Três... portas. Pra passar pelas paredes.

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